Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Malino

Sete vidas têm os gatos, quem melhor que eu próprio para o saber? Só Daniel de Sá, claro, ninguém mais. A história de Malino ("uma homenagem a Miguel Torga", faz questão de frisar) é a prova acabada de que não há heróis. Nem sequer entre nós, gatos de ciência, felinos da corda, miaus de luxo neste mundo de lixo. Todos temos um fim. Todos.

Em baixo:
"Malino".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.


Malino era um gato de alto lá com ele. Um senhor gato. O preferido das gatas da vizinhança, que o aceitavam sem mais aquelas. Não ia em grandes conversas. Tiro e queda. Lá por causa disso não incomodava os ouvidos sensíveis dos senhores homens e das senhoras mulheres que tentavam dormir à hora do namoro. Para alguém mais desinsofrido era só o tempo de se levantar à procura de improvisada arma de arremesso e, em chegando à janela, já tudo era silêncio. Nem havia olhos capazes de descobrir o par de amorosos, que se esgueiravam num ápice para onde ninguém os visse. Que dissessem dele que era um valdevinos, aceitava. Mas um valdevinos decente, acrescentassem ao dito por respeito à sua pessoa. Filhos e netos eram tantos que nem fazia ideia de a quantos montavam. E não jurava que de algum não fosse pai e avô ao mesmo tempo, que isso de deslindar de geração em geração quem era do seu sangue não era coisa que se lhe pedisse com segurança. Que Deus lhe perdoasse qualquer abuso, mas não tinha modo de fugir à sina. Era fado de gato, paciência. Piores eram as pessoas gente, que juravam para a vida inteira e, às vezes, era bem de uns dias ou meses e mal do resto da vida. Por isso se queixava o senhor Francisco que, tendo-lhe dado Deus três filhos e duas filhas, já levava na conta oito noras e genros. E gabavam-se muitos de façanhas de enganos. Mas não queriam que ninguém tocasse no que era seu. Porradaria de criar bicho e sangueira de fazer morcelas, se tal acontecesse. Mortes de gente, até. Outro modo de ser era o do João Cana, esse fala-barato, que se confessara de aventuras de alcova e o padre absolvera do pecado da mentira apenas! Um farsante. Aquilo era lá homem de pecados maiores do que o desejo, coitado? Pagava um quartilho de vinho para calar a boca de quem dizia tê-lo visto com esta ou com aquela. Não estivera nada. Mas os rapazes conheciam-lhe o fraco, era um tal inventar que o apanhavam em delitos tão secretos que nem aconteciam. E ele, de elogiado, fingia-se temeroso de que lhe divulgassem segredos de encontros tão escondidos que nem o próprio Deus testemunhava. Vingava-se na sueca. No jogo das cartas, para que não haja equívocos. Tinha a sorte dos tolos, diziam-lhe. Que lhe importava isso, se ganhava mais do que perdia? Um dia, puxou o cinco de copas, e fez a mão, porque os outros três baixaram o jogo. A seguir, puxou o ás, e levou a seta e o rei. Chamassem-lhe tolo, que os enganara e assim ganhou a partida e o dezasseis de vinho.

Chegava ao fim da Primavera numa desgraça, uma vergonha. Coisas da vida. Recuperava depressa, que a ratoagem não foi feita para mais do que isso, e as guelras do peixe e outras delícias eram à farta. E ainda lhe restava barriga para roubar algum chicharro – carapau, no dizer fino de Lisboa – ou um pinto descuidado pela mãe e pelas donas, tentações escusadas, é verdade, mas o fruto proibido é o mais apetecido. Nesse tempo, andava livre pela casa, só lhe trancavam as portas dos quartos de dormir. Também não havia muito como evitar que entrasse quando lhe apetecesse, ainda que o não quisessem, o que não era o caso, por via da bicharada que roía tudo. Melhor vida do que aquela nem a dos seus antepassados do Egipto. Então a dona velha regalava-se:
“Quatro, Ludrinhas, que o Malino apanhou hoje. Aquilo é que é um gato!” E era. Preto, que ia esquecendo dizer. Gato preto sempre foi bom caçador.

Malino acabara de dormir aquela soneca no calorzinho das pedras da calçada. Saíra-lhe a sorte grande, pois ninguém o incomodara: nem bicho cão nem bicho gente. Já não resistia à dormideira em qualquer sítio, às vezes para esquecer a fome. As forças haviam minguado em proporção inversa à idade. Noutros tempos, estaria por essa altura a sonhar de dia com aventuras nocturnas. Mas agora? Qual quê! Tivera um devaneio desses, dois dias antes, e ainda lhe doía o corpo todo de uma sova que levara. Do Tarouco, um trinca-espinhas farrusco, um badameco, que só de lhe ver os bigodes teria fugido a sete pés, se não fosse aquela velhice que o escanzelara e amodorrava. Até lhe ia tirando um olho com as unhas, o excomungado. E as gatas já não eram tantas como antigamente, ninguém as queria, para não encherem os quintais de filharada. Gatos, lá escapava algum. Por isso eram como sete cães a um osso. Tanto se fartara de namoros que lhe faltava a paixão para andar por telhados e muros velhos à procura de namorada. Verdade, verdadinha que não tinha era forças para isso e para o resto, mas desculpava-se assim, tentando acreditar no que dizia a si mesmo. Gastara quantas das suas sete vidas? Cinco? Seis? Poderia viver mais um ano? Dois? Desconfiava. Longe fosse o mau agoiro, mas aquela pieira e aquele desmazelo não anunciavam coisa boa.


Levantou-se tonto de sono, começou a atravessar a rua como se pesasse tanto como um bezerro desmamado. E era só pele e osso. Os seus cinco sentidos estavam avariados, gastos. Foi quando veio aquele maldito carro, silencioso como um ladrão, como se as rodas tivessem almofadas iguais às das suas patas, como se o motor não fizesse mais barulho do que um coração de gato. Nem apitou, o demónio. Acaso não merecia ele uma travagem, uma apitadela ao menos? Ou foi a saia curta da Rita que distraiu o condutor? Fosse o que fosse, qualquer coisa lhe bateu na cabeça quando a máquina infernal lhe passou por cima. Sorte não ficar debaixo de uma roda. Devia estar igual a morto, depois do desastre. Desmaiou, sem saber por quanto tempo. Tanto podia ter sido um minuto como um dia e uma noite.


Quando acordou, o chão não era duro nem quente. Ouviu vozes das donas. Estava nos dois palmos de terra do quintal. Salvo! Reconheceu também a voz do David Lopes. Ah! Canalha, fora ele com certeza que quase o mandara desta para melhor. Havia de pagá-las, qualquer dia, que aquilo era um doido a guiar o carro, como se todo o Mundo fosse seu. “Se eu tivesse um sacho, enterrava-o num instante.” Então julgava que o tinha matado! E não mostrava um sinal de pena! Alma de cão. Ia ter uma surpresa das grandes, quando o visse vivo e pronto para outra. Pronto para outra era um modo de dizer, agora é que tinha mesmo a certeza de não lhe restar mais do que uma vida. E estava presa por um fio. Aquele fio de sangue que lhe corria da cabeça. “Não te preocupes, David. Isto até foi um favor dares cabo do bicho, que já ninguém podia sofrer.” Ah! desgraçada! Safada! A dona nova, que se babava para lhe pegar ao colo, enquanto foi pequenino, que passava minutos enormes, mas saborosos, a coçar-lhe o lombo e o pescoço quando já era grande, e ele a esticar-se, regalado, ao contacto das mãos dela? Assim lhe pagava tudo: o trabalho, o carinho e a fidelidade? “Deixa, que eu atiro-o da rocha abaixo, e o mar há-de levá-lo quando a maré encher.” Depois de ouvir isto à beira da morte, se um gato não merece o Céu!... Tanto tempo se passara desde a última vez que ela pegara nele ao colo. Tinha saudades de sentir as suas mãos no pêlo. Viesse buscá-lo. Não devia estar bom da cabeça. A poder fugir num instante, e disposto a ficar ali, à espera da morte, só para se sentir tocado uma última vez por aquelas mãos de que tinha saudades. Mas gato também tem direito a morrer recebendo algum carinho, nem que seja só imaginado. Assim como assim, a vida não lhe importava para nada já. Não tinha graça nenhuma, era uma morte lenta.
Pareceu-lhe que a dona nova pegava nele com o cuidado de antes. Talvez fosse apenas para não sujar as mãos de sangue. Foi o seu último salto. O maior de todos. A queda sobre as pedras fez o resto. Não sentiu o que faltava ser feito.

5 comentários:

Sabina disse...

Fiquei triste com a história.

Foquei-me no meu gato, companheiro de bons e maus momentos, também ele já com menos vidas que as sete.

Mas claro que o texto está absolutamente divinal e as letrinhas até parecem estar todas devidamente ordenadas.

Grande texto, Daniel.

Ângela disse...

Excelente!
Lembrei-me, imediatamente deste texto, que li ontem n' O Jansenista:

"A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros."
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

Anónimo disse...

Demasiado cruel !

Anónimo disse...

Já tinha enviado um e-mail ao Rui Vasco Neto a perguntar por si, Daniel de Sá. É demasiado bom tê-lo (lê-lo) por aqui para não protestar nas suas ausências. E este texto é a prova provada disso mesmo. Cumprimentos cordiais.

Anónimo disse...

Insaciável
Eu também fiquei triste. Mas que é que a vida moderna tem feito a estes animais até há pouco tempo imprescindíveis?
Ângela
Concordo consigo. A maneira como tratamos os animais e as plantas diz o tipo de pessoa que somos.
Anónimo
Mas a realidade é muito pior. Tanto mais que este conto não passa de uma alegoria.
Rosa
É muito bom saber que há quem espere por nós. E se nem sempre pudermos chegar quando requerem a nossa presença?
Obrigado a todos. Farei o possível para não vos desiludir, amigos.
Abraços.
Daniel