Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Romance da Bicha-Fera

Não há nada como um conto infantil para acalmar as tormentas das conversas sérias. É essa a proposta de Daniel de Sá para hoje. «Vai esta minha versão do romance popular "A Bicha-Fera", ou "A Bela e o Monstro"», diz-me em recado privado. «"Bicha-Fera"é o nome mais popular nas versões portuguesas, e foi por ele que optei.» Seja então bicha-fera, meu amigo. E romance, sobretudo, que é o que mais falta faz aos desamores deste mundo.

Em baixo: "A Casa".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.
Era uma menina bela,
Tão bonita de pasmar.
Já não tinha sua mãe,
Morta de um mal de matar.
Vivia só com seu pai,
Que nunca a qu’ria largar.
Mas um dia ele partiu
Para um longo viajar.
Choram os dois tanto, tanto,
Que é de o coração cortar.
Vai-se o pai por muito tempo,
Sem saber quando voltar.
Mas no dia do regresso,
Já se sentindo chegar,
O caminho por que vinha
A um palácio foi dar.
Era tão forte e tão belo,
E tão grande de espantar.
Não havia casas perto,
Nem onde chegava o olhar.
E, na frente do palácio,
Era um jardim de encantar,
Das rosas mais perfumadas
Que se pudessem cheirar.
Colheu o pai uma delas
Para à menina levar.
Logo se ouve a bicha-fera
No mais terrível bradar:
“Sou o dono do palácio
Onde acabas de passar,
Mais do jardim dessa rosa
Que me quiseste roubar.
A morte tens prometida,
Ninguém te pode salvar,
Que essas rosas é que são
O meu almoço e jantar.”
Pôs-se o pai em grandes prantos,
Num mui triste lamentar:
“Ó meu Deus, que vil tormento,
sofrer tanto por amar.
E agora a minha filhinha,
Quem dela há-de cuidar?”
Logo a fera respondeu
Com uma voz de assustar:
“Se tens uma filha, és salvo,
que assim te quero salvar,
mas ao preço dessa filha
que terás de me entregar.”
Foi-se o pai só de dor feito
E sempre, sempre a chorar,
Para trazer a menina
E o seu pecado pagar.
Nada temeu a menina
Do que havia de passar,
Pois até daria a vida
Para a de seu pai salvar.
Entrou naquele jardim
Que era muito de encantar,
E pelo portão da frente
Do palácio de espantar.
Ninguém a vem receber,
E ninguém ouve falar,
Até que, morta de sono,
Na cama se foi deitar.
Deitou-se em cama de penas,
Muito macia ao tocar,
Mas nem sequer pensou nelas
De muito cansada estar.
Ao outro dia acordou
Depois de bem descansar,
Procurou por toda a parte
Pondo-se sempre a chamar,
Mas ninguém viu nem ouviu,
Tal como fora ao chegar.
Mas logo viu mesa posta
Com excelente manjar,
E em muitos dias seguidos,
Ao almoço e ao jantar.
Até que, passado o tempo,
De a Lua encher e vazar,
Ouviu um choro tão triste
De o coração apertar.
“Quem chora assim tristemente,
Com tão profundo penar,
Venha chorar no meu colo,
Pois o quero consolar.”
“Por mais que queiras, menina,
Eu não me posso mostrar.
Sou tão feio, tão horrível,
Temo muito te assustar.”
“Se sois vós quem bem me trata,
Que tão bem me quis tratar,
Por mais que vos veja a cara
Só a alma eu hei-de olhar..
E, se quereis que eu o jure,
Por meu pai hei-de jurar.”
Aparece a bicha-fera,
Num triste e pesado andar,
E logo corre a menina
Para o seu pranto enxugar.
Deitou-se no seu regaço,
A bicha-fera, a chorar,
E então a bela menina
Beijos lhe deu sem contar.
A bicha-fera acalmada
Adormeceu a sonhar
Que talvez houvesse um dia
De com ela se casar.
Passou-lhe a mão pela testa,
Não parou de o afagar,
E enquanto o bicho dormia
Nunca deixou de o olhar.
Foram os dois tão felizes,
Em tantos anos de amar!
Todos os príncipes belos,
Ao ver o tempo passar,
Iam ficando tão velhos
E tão feios de pasmar,
Enquanto que a bicha-fera
Nada tinha que mudar.
E, por graça muito estranha,
Nunca havia de mudar
A beleza da menina,
Que estava no seu olhar.

3 comentários:

Anónimo disse...

Como é maravilhoso recordar, através das palavras belas e simples do Daniel de Sá, a lição que nos é dada através do fantástico conto infantil" A Bicha-Fera":
uma coisa deve ser amada antes de ser amável.

Rui Vasco Neto disse...

abelha,
«uma coisa deve ser amada antes de ser amável.»
você tem mau feitio mas diz coisas giras, de vez em quando.
muito giras, de vez em quando.

Anónimo disse...

Rui, mas quem diz coisas destas, tão agradáveis, é de certeza boa pessoa.
E eu, que sou da Maia, só posso agradecer a quem por Maya se faz passar.