Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Auto da Barca de Bruxelas

O meu amigo Daniel de Sá é uma alma generosa e preocupada. «Meu Caro, tens essas setes vidas tão cheias de tristezas, que te mando mais esta, escrita quando o Durão ia para Bruxelas e o Santana ficava com o lugar cá.» Mais uma tristeza, portanto, diz ele. E manda-ma com um abraço, este menestrel sem vergonha. E eu faço o quê, agradeço? Está bem, seja. Obrigadinho, ó da onça.

Em baixo: "Auto da Barca de Bruxelas".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.

Personagens:

O Primeiro (P) - ou seja, o Durão, um rico diabo

O Gajo (G) - o Diabo, ele mesmo

O Gajeiro (Gi) - o Santana, um pobre diabo


G Quem sois, senhor capitão,

Que fazeis por estas bandas?

P – Eu sou Zé Manuel Durão.

G – Por que vindes tão fujão

E trazeis as velas pandas

Se o mar já se acaba aí?

P – Trago pressa de chegar.

G – Ou de fugir?

É que desde que vos vi

Por sobre as ondas do mar,

Senhor, parecíeis vir

Trazendo lume no rabo.

P – Vós sois Deus ou o Diabo?

G – Qual dos dois vós mais quereis,

Senhor, que eu seja?

Gi – Ó meu senhor, não sabeis

Que este meu amo procura

Um lugar de onde se veja

O Mundo de grande altura?

G – Quem é este safardana?

P- É o Santana.

Sois o Demo? Dizei já!

G – Que vos importa?

Adivinhai... sois capaz...

P – Se vim de tão longe cá

Para bater nesta porta,

Ó meu senhor, tanto faz,

Desde que ela se me abra.

G – Vedes-me cornos ou pêlos,

Cauda, chifres, pés de cabra?

P – Não os vejo, mas sabeis

Que bem podeis escondê-los

Se o Demo sois.

G – E tu que dizes, gajeiro?

P – Eu respondo pelos dois!

Até pelo povo todo!

Gi – (É por isso que é primeiro.)

G – E dais-mo inteiro?

P – Não será de mais o bodo?

G – Se muito quereis que eu dê,

Muito tereis de me dar.

Gi – É o Demo, já se vê!

P – Tu não te podes calar?...

Fecha a culatra, marujo,

Não o queiras ofender.

Gi – Mas se o gajo for o Sujo

Há-de gostar

De a gente o reconhecer.

P – Se não for, estou tramado,

Volto a casa desonrado.

Gi – Saístes de lá assim...

P – Olha que saio é de mim

E mando pôr-te a afogar.

Gi – Não vale a pena o chinfrim

Que é já muito longe o mar.

P – Oh! diabo, é bem verdade!

G – Ah! já notastes quem sou!...

Vedes que tenho bondade,

E muito dou

A quem bem me for fiel.

P – Para onde me arrastou

Vossa excelência?

G – Isto é a torre Eiffel.

Gi – Ele é cornudo, tem lã...

Oh! que santa paciência!

Se isto for a torre Eiffel

Eu serei o Saint-Germain…

P – E eu Notre-Dame serei...

G – Tudo o que digo, fazei.

Ponde um joelho no chão.

P – Ou dois ou três! Já estão.

Gi – Eh! pá, que grandes chavelhos!

P – Dá-me aí a tua ajuda:

Põe no chão mais dois joelhos.

Gi- Senhor...

P – Caluda!

G – Jurais-me fidelidade?

P – Claro, até à eternidade!

G – E tu, amigo, que dizes?

Gi – Já a jurei tantas vezes

A todos os portugueses,

Fiz mil mulheres felizes,

Como posso jurar mais?

G – ‘stás dispensado da jura.

5 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom :)!
você é "dose"... :)...
mas... altamente!!

abreijos,
Maria ( atal do "i"...)

Anónimo disse...

Amigo Daniel,
diverti-me a valer.
Por momentos, pareceu-me estar a ler mestre Gil Vicente.
Parabéns.

Anónimo disse...

Gosto bastante deste aspecto da escrita do Sr. Daniel de Sá, mas sinto a falta daqueles contos 'do burrinho' e do 'tremor de terra'. Para quando um texto desses, Sr. Daniel?
Os meus cumprimentos aos dois.

Anónimo disse...

Obrigado, anónimo, obrigado, Mifá.
Meu Caro Corrêa Simões, os cumprimentos são para mim e para o burrinho? Obrigado. Farei o possível por trazer aqui outras figuras que lhe inspirem essa ternura.

frosado disse...

Adorei. Está genial. Um abraço vizinho Daniel.