Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


domingo, 30 de dezembro de 2007

Lógica Calé

Há várias lógicas, todas perversas, ao longo de toda a notícia do 'Correio da Manhã' que conta a história de um cigano de 27 anos que engravidou uma menina de 11, da mesma etnia. Deixemos o essencial por um momento. O facto em si, que é de horror para todos nós. Uma gravidez aos 11 anos é difícil de aceitar seja por quem for, e eu tenho uma filha com 10 e outra com 12 anos de idade. Tudo dito, penso eu, por esse lado. Façamos então um esforço de concentração nos pequenos pormenores que supostamente apenas compõem este despacho.

O perfil do criminoso, para começar. «Ao que o CM apurou, o detido, natural de Anadia, foi apanhado, há oito anos, a roubar uma fábrica abandonada, aproveitando quilos de cobre e de ferro que se encontravam sem uso, mas com dono identificado. Mas não é só. O abusador terá entrado na comunidade cigana por via do negócio da droga. Numa ‘visita’ da GNR de Oliveira do Bairro, foi encontrado na posse de várias doses de haxixe, peculiarmente amarradas a um prego que ajudava a segurar a barraca onde vivia. Mas já noutras patrulhas ao mesmo acantonamento cigano, Luís – que possui agora a sua própria habitação, de pequenas dimensões, mas de cimento – sempre preferiu evitar as autoridades. Ainda assim, a GNR não o define como alguém perigoso. “Nunca nos faltou ao respeito e não temos conhecimento de grandes desentendimentos verbais ou físicos em que esteja envolvido. Mas que é uma rica peça, é”, deixa escapar um agente da autoridade: “Ou anda com gente a mais no carro ou é visado com multas de estacionamento. Esse tipo de delitos.» Lógica perversa número um.

«Mesmo entre a comunidade na qual está inserido, Luís não gera consenso. Apesar da gravidez precoce ser relativamente comum na etnia cigana, a diferença de idades parece ter desgostado a família da criança, de tal forma que não faltaram reclamações na GNR local. Apesar de tudo, os familiares da menina acabaram por aceitar a situação, desde que o pai da criança assumisse as suas responsabilidades.» Lógica perversa número dois.

«Entre a vizinhança, a notícia dos abusos mereceu natural reprovação, mas ninguém quis estender-se nos comentários. “A mim, desde que não invadam a minha propriedade, podem fazer o que lhes der na cabeça, afirmou uma vizinha, que preferiu o anonimato. » Lógicas perversas números três e quatro.

«Contudo, não seria apenas com a futura mãe que Luís mantinha relações sexuais. Segundo a GNR, conhecedora do dia-a-dia no acantonamento, o agora detido tinha outros relacionamentos com menores.» Lógicas perversas números cinco e seis, suposição número oitenta e três.

«A Polícia Judiciária de Aveiro prendeu o mesmo suspeito duas vezes. A primeira foi no início do mês, depois de ter confirmado que a menina efectivamente estava grávida e que aquele indivíduo era o pai da criança. O suspeito foi identificado, constituído arguido, mas os magistrados entenderam que não podia ser detido.» Lógica perversa número sete.

«Voltou a ser preso na passada quinta-feira e desta vez a PJ já não o libertou. Apresentou-o sob detenção ao juiz de instrução de Oliveira do Bairro que decidiu pela mais gravosa medida de coacção. Por ter entendido que haveria perigo de continuação da actividade criminosa, mantendo-se também o perigo de fuga, consumado aliás na primeira abordagem policial. O magistrado defendeu também que a libertação provocaria alarme social. » Lógicas números oito, nove, dez e seguintes, todas perversas, todas iguais.

«Com pequenas casas em tijolo, um caminho de terra que apenas tem ligação às mesmas e água canalizada, o acampamento em Oliveira do Bairro foge ao habitual. O facto é que o terreno onde habitam é mesmo pertença dos ciganos, pelo que foi obrigatório à Câmara ceder-lhes esse tipo de privilégios.» é o último exemplo que vou citar. Para mim, que já li, reli e treli a notícia toda, qualquer espírito isento detecta por aqui uma lógica perversa, se não várias. Só mesmo eu, mal intencionado sem coração, conseguiria ver aqui preconceito ou racismo.

Um sítio chamado Aqui

Marcolino Candeias criou uma personagem magnífica, o Joe Cannoa, um contador de histórias fantásticas, capaz até de ressuscitar Lázaro uma segunda vez. João Ubaldo Ribeiro deu vida a muitas personagens tão deliciosas como as do Marcolino. Esta é uma tentativa de homenagear um e outro, através de um emigrante açoriano em terras brasileiras, vagamente primo do Joe Cannoa, que para lá foi em criança e que, do que diz, pouco soa à linguagem de pai e mãe.
(Nota do autor)


Em baixo: "Um sítio chamado aqui".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.


Baiano tem famas bem ruins. Todo mundo o desconsidera como sujo e vagal, e mais ainda que, tendo esse tanto de porco e preguiçoso, é também a vergonha do Brasil na hora de falar. Mas seu Ubaldo escreve direito nossas falas, e faz literatura que não há quem não dê aplauso ou bote defeito, inclusive portugueses de Portugal, e sendo que eles dão lustro na prosápia, dedicando à gente a desgraceira da ignorância. E se vosmecê ouvisse Julinho Calçagatos, principalmente depois de feitas suas devoções de cachaça, então ficava sabendo o que é biblioteca mesmo. É certo que na hora de contar mentira não há quem ganhe ele, o que aumenta até a imensidão de literaturas que ele fala, e que o descarado chegou mesmo a dizer que os americanos já tiveram na Lua. Mas a gente desculpa, e põe as culpas na cachaça de Adínton, que é mais forte que álcool de sarar infectos. Teve uma vez um concurso de mentiras – ideia de Adínton para ganhar dinheiro nas apostas de aguardente – e o danado derrotou todo mundo num instantezinho. Nem deu hipótese. Não vou contar as mentiras da concorrência, uns excessos que ninguém pode imaginar, e eu não quero ser chamado de excessivo. Julinho Calçagatos, que era o último a botar palavra, falou só isto: “Esse pessoal aí estão fora do concurso. Tudo o que eles disse é verdade.”

Por essa razão das ilustres letras de seu Ubaldo me dá até vontade de chorar, eu que nem sou homem de chorar por cacarecos. Bem que minha santa mãe me azucrinava todo dia com a obstinação dos estudos, mas eu só tinha paixão de escola na hora de sair. Se escola fosse só sair dela eu tinha chegado a doutor. Tia Gertrudes era mais compadecida, e por isso era quem mais me aceitava em casa dela deixando meu banco esperar por mim em vão até quase ser hora de murucututu sair caçando. Chegadas as convenientes indagações, ela se justificava dizendo a mamãe que eu tinha ajudado no acarajé, competência de veterano, especialista mesmo, e não deixava aguar, não dava pausa enquanto titia fritava. Então aí mamãe exigia uns bolinhos como prova das alegações, e isso depois que eu levava uma porrada das retorcidas. Assim que a consequência era que só eu comia grosso das mãos dela, enquanto que todo mundo se babava com os bolos de titia, mais ainda porque o feijão dela era o muito melhor daqui.

Papai se abstinha nas justiças, e só deu sentença em meu proveito quando eu fiz queixa, provada e comprovada por tudo quanto era aluno de professor Jacó. Professor Jacó não é de sabedorias seguras, não. Os meninos juraram em minha jura que ele ensinou isso de alfabeto dando um nome à terceira letra, e logo estava chamando ela de outra maneira. Num dia era cê e no outro era quê. “Mudou de opinião, e a gente sabe que professor não pode ter opinião”, falou meu pai. “O povo devia era tirar os filhos da escola, que para aprender errado não é preciso professor com diploma. Errado a gente sabe.” Com tudo isso, não aprendi mais que umas sete ou doze letras, e até essas esqueci para todo sempre, veja a inglória. É isso aí que me dá vontade de chorar, já falei, que eu nem queria ser doutor, só presumia ser capaz de ler a Bíblia e nossas histórias de seu Ubaldo.

Aqui tem pouco pessoal capaz de ler direito, mas a velha Mariana sabe mais que uma universidade tudo junto, mesmo que ela é mais sábia que Julinho. Porém não admira, que foi o Espírito Santo que ensinou, tanto que até pode falar as línguas principais do Mundo, inclusive português, e só por humildade não fala e porque ninguém ia entender. A velha Mariana é daquelas mulheres que a gente pensa que já nasce velha e casa viúva, mas também foi novinha como Ernestina, pode ser mesmo que bonita como ela, que todo mundo quer ver passar quando ela passa e ficar olhando a roda da saia e esperando o vento. Foi ela que escolheu nome para quase o pessoal todo, porque sabe o nome de tudo quanto é santo, e praticou no montão de filhos que teve, que era metade do povo daqui se não tivessem ido para outras partes. Quando olhavam no espelho e viam cara de homem, pensavam que era tempo de abrir o gás, e pronto, abriam mesmo, só parando a mil léguas daqui, no mínimo.

Julinho Calçagatos é caso mais de espantar, mormente que não aprendeu de Deus, foi só ouvindo e falando a vida toda. Se todo mundo tem seu acarajé, o dele foi fazer laço a passarinho, e ali logo se perdeu homem capaz de ganhar Nobel naquilo que fosse preciso, pode crer. Era só dizer “Julinho, vai aí no concurso e vence esses camaradas todos.” Nem que fosse alemão ou americano ele vencia mesmo. Julinho podia até ter estudado para santo, o que parece ideia de jerico mas só antes de ouvir suas razões, mas ele não quis, diz que dá uma trabalheira medonha que mesmo só santo é que pode. Se não fosse, Julinho chegava a santo, com velas, flores e tudo lá no altar, só que ele queria isso era para fazer umas vinganças, não esconde. Rico que fosse na igreja pedir abundância, ele dava só de piolhos e de bexigas, e se não lhe dava uma bicuda na testa era porque santo não mexe, o que é outra amolação que Julinho não aguenta, por isso ser santo é difícil mais que subir pau de sebo. E de carne não havia de consentir na mesa do rico mais que mocotó em dias de festa, Carnaval inclusive, e isso caso o rico não gostasse. Mas menina boa e feia ficava logo ali boa e boa, ora veja, não sei se entendeu.

Uma vez teve aqui dois fulanos para arrolar o povo de testemunhas de Jeová, que é o Nosso Senhor deles, e foi Julinho quem resolveu a questão. Bem que a velha Mariana tentou, mas embatucou, com respeito a essas coisas que eles mostravam na Bíblia, e o povo olhando e ouvindo sem saber que dizer. Os fulanos falavam que o Mundo ia acabar mais dia menos dia, mas davam garantia do Céu, e mais não sei o quê. Se eles acrescentassem setenta virgens, como os outros, a gente até que fazia negócio sem mais considerandos, que a coisa estava ficando meio chata. O pior foi na hora de explicar o que era proibido lá na religião deles. Houve coisas que a gente ia dando acordo – não bater na mulher, tava certo. E a mulher pode bater no homem? – Não pode, tá mais certo ainda, duas vezes certo, com isenção para a mulher de Junípero, todo mundo sabe. Pagar um dinheirão para as gravatas deles e mais os ternos e as pastas e as viagens, que o mundo é grande, maior que o sertão todo e cheio de granfinagem que a gente nem sonha. Eles não falaram isso, mas o pessoal percebeu logo. Pior foi na hora de proibir cachaça. Julinho foi mandando “bota aí outra cachaça, seu Adínton”. Os da pasta deitaram fogo pelos quatro olhos e falaram que ele ia direito para o Inferno. Julinho encheu de ar, tossiu quatro vezes (aquela era especialíssima ocasião, que nas vulgares só tossia três), e emborcou o resto da cachaça. Nem cuspiu, que ele não cospe depois de beber para não botar fora o gosto. Puxou as calças, esfregou com o dedão do pé direito o calcanhar canhoto, e deu sentença. “Vosmecês falam que nessa especialidade de Céu só cabe cento quarenta e quatro mil.” Depois, descendo no respeito, acabou a argumentação. “Vocês o melhor mesmo é não procurar mais fregueses que tire seus lugares." Morreu aí. Tinham entrado rezando e saíram xingando todo mundo. Pelos modos, aqueles fregueses não vão fazer parte dos cento e quarenta e quatro mil. Não merecem. E a culpa é toda de Julinho Calçagatos. Já dizia a mãe dele que ele botava as almas dos outros nos Infernos.

Seu Adínton também não sabe ler, mas tem livros com tudo quanto é fiado. Em vez de nome ele faz um desenho das aparências de cada qual, assim que bigode quer dizer Jorginho Filho, sobrancelha grossa é seu Antenor, e os mais consequentemente. Julinho não precisa desenho, Adínton tem um livro só para ele. Pior é o desenho de Raimundo, a quem a mulher planta na testa até doer a alma só de ouvir suas histórias escondidas, que eu nunca vi nem quero ver para não ter assombrações. E diz quem já viu o desenho dele que Adínton capricha nos pormenores da armação. Raimundo disfarça, mas a gente vê na cara que está sempre virado no cão, chateado mais que lagosta apanhada no jereré, e não é para menos, que ninguém gosta. Dívidas de cachaça são lembradas com um copo cada vez, e quando chega no quinze ele faz uma moringa. Sendo caso que o camarada bebe mais quinze sem pagamento, Adínton não desenha outra moringa, faz um dedo espetado com seu dedo do meio servindo de modelo, veja o desaforo, e não dá nem mais uma pinga ao coitado.

Televisão nunca apareceu aqui para filmar o povo e essas coisas assim, que o único crime mortal que teve aqui foi quando Formosinho degolou Dalberto. Formosinho é um cara sem vergonha, mas houve até quem risse da façanha dele, que isso não é tudo alma lavada. Mas a gente ri sempre quando lhe chama esse nome, que o pobre é tão feio que só explicar mete medo. E até deu risada universal quando ele ficou com os olhos quase saindo pelo carão fora, por causa do aperto que Zé Cão lhe deu no gargalo. Zé Cão é o dono das cabras viúvas do bode defunto, e só não esganou mesmo Formosinho para todo o sempre porque não era dono do bode. Se fosse, esganava, e o crime ficava mais feio ainda. O dono era Formosinho mesmo, mas Zé Cão queria o bode dele para fazer ofício nas cabras, e estava no tempo das núpcias delas. Foi isso que ele não perdoou, porque para achar outro bode capaz de tais proezas, inclusive que Dalberto nem sequer era de preliminares demorados, precisava ir até ao finzinho do Recôndito, e mesmo assim não sei. Mas o verdadeiro dono do bode até que tinha razão, que bode não dá leite e ele já vinha aguentando o bicho vivo há muito tempo só para emprenhar as cabras de Zé Cão, que não pagava dote nem nada. Era só despesa, que bode depois de crescido não rende na engorda, e Dalberto levava seis meses recuperando-se dos obséquios. Aliás o coitado de Formosinho jurou que não tencionava matar, apenas queria cortar um chifre para uns enfeites lá dele, só que o cabrão do bode não deixou ele cortar rente, e então Formosinho teve de cortar na goela, veja a desgraça. Dalberto morreu logo ali, e o desnaturado aproveitou o óbito do chifrudo para fazer jantar de bode assado.


Aqui tem igreja, mas é tão pequenina que Nosso Senhor tem de sair para o povo entrar. E botaram nela um santo que não há quem conheça, nem padre, nem bispo, nem papa mesmo, inclusive a velha Mariana. Imagine só: São Cucufate! Mais esta no desprestígio! Cristão não leva nome assim, mas pode que na língua dele até fosse grande importância. A velha Mariana, que sabe de santos e santas e Nossas Senhoras que nem doutor da Igreja, leva um ano inteirinho de catecismo só treinando os meninos para não rir quando ouvem o nome dele, e não é para menos.

A igreja quem mais usa é a velha Mariana, mais ainda nos dias que Brasil joga copa. A gente põe ela rezando lá para Deus Nosso Senhor ajudar o escrete, ou para desajudar os outros, o que faz os mesmos devidos efeitos. Quando o jogo é com os pançudos da Argentina ou com os delicadinhos ingleses, ela vai de véspera. Nesses dias o boteco fica tão empesteado que não cabe nem mosca, mas está tudo de acordo. O pior é no resto do ano, que isto aqui o futebol é muito dividido. Metade do pessoal é Bahia, outra metade é Vitória, e a terceira metade é uns sem-vergonha de clubes que eu nem sei o nome direito. O mais peguento é Chico Come-Água, que é Fluminense, acha que pode? Mas não é Fluminense de Feira Futebol Clube, se fosse, pelo menos era time baiano, ele é Fluminense carioca, por raiva que tem do outro, porque queria ser goleiro lá deles, e o míster disse a ele que não servia nem para gandula pois não agarrava nem bola parada. E quem viu ele pensar que estava jogando confirma.

Aqui é tudo doutor de bola, se duvida pergunte, e se quer provas aqui tem a alinhação do time que deu despacho de 5-2 na Suécia: Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando, Nilton Santos, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Pelé e Zagallo. Este pessoal só não ganhou três copas seguidas porque perdeu em Inglaterra com os moçambicanos, que os portugueses só sabiam jogar futebol quando eram moçambicanos, e mais porque contra eles só alinhou metade do escrete, que o beque direito deles completou nas pernas do Rei a ousadia que um comunista tinha começado. Mas o futebol de hoje é outro sentimento que dá vontade de chorar. Antigamente tinha pontas que driblavam tudo quanto era zaga, e ficavam esperando os meias para driblar antes de fazer gol. E tinha chute que era mais que tiro de canhão e até assustava os anjos. Nos treinamentos de Jairzinho não botavam véu de noiva na baliza que ele chutava, para não rasgar. Mas desde que apareceu a televisão dando importância neles, jogador de futebol mais parece estar fazendo concurso de misse, um desconsolo. E mais ainda que agora todo mundo se divide na opinião, que cada um vê penálti e ofissaide quando quer que seja penálti e offisaide, e quando não quer não vê. Antigamente o pessoal acreditava no espíquer sem mais quê nem pra quê, não dava encrenca, ele falava tava falado, quem era a gente para negar?

Que me desculpe seu Ubaldo, mas isso de saber ler eu acho que não ia dar, não. Eu gostei de ser menino, mesmo daquele modo sem jeito que já contei. Quando fiz doze anos só passava de metro e meio porque tinha calos nos pés como jegue sem ferraduras. E agora veja se tem jeito eu usar sapato fino. Futebol tinha cheiro de suor dos pontas que passavam correndo na linha e perfume de couro da bola. O povo comia pó e aguentava firme na chuva, no sol e no vento. O povo fazia parte do jogo. A televisão meteu o jogo em nossa casa, mostra tudo direito, a verdade que não tinha antigamente e por isso é que era tudo tão lindo. E dá repetição até. Mas vida não tem repetição, não. Não dá para ver como foi para aprender como devia ter sido. Se eu fosse capaz de ler os livros de seu Ubaldo, ia poder ficar lendo tudo quanto é livro. E pode que aí fosse como isso de televisão. Acabava o encantamento e a inocência.

Daniel de Sá
(Homenagem a João Ubaldo Ribeiro e Marcolino Candeias)

Deu sinais? De certeza? Quais?

É o regresso dos 'Bexiga' ou o 'Mar tá Bravo'?

O China já está com o Pidá, mas foi só por acaso.


Assim termina (?) a saga deste personagem do burlesco, cuja história foi contada aqui ainda há bem pouco tempo. Mas vale a pena recordar "As gargalhadas do China". Nem que seja só para a gente acabar o ano a rir.

Bom dia. Hoje eu sou pópóóó póóópóóó.

sábado, 29 de dezembro de 2007

vinte e três e cinquenta e nove

Hoje é sábado, vinte e nove. Dezembro, trinta e um dias. Com o de hoje são trezentos e sessenta e três, se não estou em erro. Mais um minuto e começa o dia três seis quatro, o penúltimo desta série de trezentos que acaba em sessenta e cinco. Ponho o pensamento em dois mil e oito, só para ver como é para contar como foi. Ora vamos, bora lá espreitar, adivinhar, conjecturar, palpitar. Diferenças grandes, quais, assim de vulto, coisas de monta? Cá em casa, aí em casa, no Benfica, no Sudão, na Bósnia, no processo Casa Pia, no mundo em geral, seja onde for? Nada? Pffff. Cansa-me depressa o exercício. Pouco vejo, devo confessar. Miopia, certamente, que a gente não pensa assim.

A gente vê coisas largas nos horizontes mais estreitos. Visões de oiro e de glória nos dias mais impensáveis e espectros de enganos passados mas nunca ultrapassados na cadência do viver. No fundo marcamos passo, numa comum formatura de uma recruta adiada. Não chegamos a sargento, nem mesmo que sopre o vento que faz voar calendários, com as folhas desses dias marcados com a cruz de Cristo. Se aqui marco, logo existo. Tem quantos, dois mil e sete? Os mesmos dos outros anos? Pois pronto. Este hoje com mais um minuto já deixa de ser vinte e nove. È trinta, é já amanhã, é a Vida que se move. Falta apenas um minuto. Por enquanto ainda é sábado, Dezembro e vinte e nove. É cedo, ainda, no fundo. São vinte e três e cinquenta e nove.

Zero Zero Nunes

O nome é Nunes. António Nunes. É um homem com uma missão. É o responsável máximo da ASAE e afirma hoje ao Sol que metade dos restaurantes e cafés portugueses «estão condenados a fechar» devido ao incumprimento de regulamentos comunitários. Diz o senhor Nunes da ASAE que metade dos restaurantes e cafés portugueses «não estão aptos a cumprir os regulamentos da legislação comunitária e não têm viabilidade económica». Nem mais. Se percebi bem, o problema está nas médias. «Ainda estamos longe das médias europeias. Para se cumprirem hoje os regulamentos comunitários como estão na lei, 50 por cento dos restaurantes e cafés não estão aptos», esclareceu.

O nome é Nunes. António Nunes. É um homem com uma missão. «O drama social é da responsabilidade do Governo, não da ASAE», avisa, frio, duro. E vai mais longe, diz que Portugal tem «três vezes mais restaurantes por habitante do que a média europeia». Os senhores sabiam? Eu não. «A UE tem uma média de 374 habitantes por restaurante. Em Portugal são 131. Isto não tem viabilidade económica», decidiu.

O nome é Nunes. António Nunes. Por trás daquela pose bófia de Inspector Martelada que mostra na fotografia, estou certo que se esconde um ser com um futuro brilhante, não duvido. Afinal, Portugal tem uma longa tradição de antónios e quando aparece um antónio desta envergadura o povo já sabe que lá vem serviço. E também para quê tanto café e restaurante, tanta escolha para quê, não me dizem? Pois metade vai para o galheiro e máinada, acabou-se. Está decidido.

O nome é Nunes, António Nunes. Zero zero Nunes, ordem para fechar.

Os foguetes antes da festa

O líder do PSD foi passsar o ano à Madeira. Como não é parvo, passou primeiro a mão no lombo de Jardim, que passa assim a contar com mais um jaime nos ramos da sua árvore surrealógica. Só depois passou a porta do avião. A coisa passou-se hoje. Passemos às palavras.

«Vamos cerrar fileiras com o PSD/Madeira, na defesa do movimento reformista de aprofundamento da autonomia e, no curto prazo, combatendo contra o inadmissível garrote orçamental que estão a procurar impor à região», disse o douto Luís ao Jornal da Madeira. É meia abertura, convenhamos. «A atitude do Governo da República em relação à Madeira é lamentável, mas na esteira do seu imenso apetite de poder absoluto». Estão criadas as condições. Prevejo o primeiro sucesso de vendas do JM desde que Alberto João começou a mandar no director. Quando foi isso? Ora, nem eu nem ninguém já se lembra. Digamos que foi há bué.

Luís Filipe Menezes, que chega hoje ao Funchal para a passagem de ano, em visita particular, desvenda ainda que «vai continuar a trabalhar, irrepreensivelmente com o presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim». Fala do PSD-M, também, embora com memória de duvidoso acerto. «O PSD regional da Madeira sempre foi um exemplo de solidariedade institucional». Enfim, pode ser outro. «O partido na Madeira saberá, sob a liderança de Alberto João Jardim, encontrar o momento e o enquadramento ideal para uma transição». Ah, bom. E concretamente? «Alguém com a experiência e o ´curriculum` de Alberto João Jardim poderá ser sempre, de acordo com a sua vontade, útil à região, e ao País. No seio do PSD será sempre uma mais valia» OK. Está tudo bem. Vai correr tudo bem. Temos reveillon.

Como em qualquer espectáculo de fogo de artifício, também este termina em
apoteose com uma daquelas rosetas de mil cores que explodem o céu em pingos de luz. Uma daquelas coisas que a gente vê e não esquece. Olhando para si próprio e para a sua liderança, o líder só viu luz: «O PSD conseguiu voltar a liderar o debate político, obrigando o Governo e o PS a reagir».

"Through the eyes of love", cantava Ray Charles nos idos de 72. Mas Ray era cego, só via as coisas assim.

Bom dia. Hoje é sábado, não é?

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Preocupações

E pronto. Mais três diazitos e acaba-se o ano, mais um ano, ainda este ano. É a tarefa de uma vida, esta. Anda uma pessoa a juntar laboriosamente os dias, um após o outro, a arrumá-los em semanas e meses, a separá-los por lãs e malhinhas, abafos e calções, a esconder os mais gastos e coçados pelo uso, a dobrar os longos, a guardar os que nos foram oferecidos, a esquecer os piores, a emoldurar os melhores, tudo para encaixotar a existência em anuários de lombada grossa com trezentas e sessenta e cinco folhas cada um. Mais três dias e lá vai outro para a prateleira. Estou tranquilo, por isso. Estou no prazo.

As minhas preocupações são outras, neste bintóito decembrino. Ando a cismar com o diacho da biblioteca em si. Com o estado da coisa, se é que me faço entender. Afinal, carrego esta tralha toda desde que me lembro de mim, sempre de um lado para o outro e cada ano mais atestada de livros. E nem sempre nas melhores condições atmosféricas, convenhamos. Aparentemente continua tudo sólido, mas nunca se sabe. Corro prateleira a prateleira e vou detectando umas lascas no verniz, coisitas pequenas, uma mossa ou outra, uns pregos cravados mas disfarçados, arranhões, falhas, alguns primeiros sinais de caruncho, aqui e ali. As dobradiças rangem um pouco. O peso vai-se notando. Fico preocupado, claro que fico preocupado. É que ponho-me a olhar para aquela livralhada toda e palavra de honra: só penso que se alguma coisa dá para o torto, não tenho um armazém de jeito onde a guardar.

Diabos atiradiços

Um mercado em expansão

«Governo fecha três prisões e abre cinco em 2008»

Nem santo nem inocente

Bom dia. Hoje o crime compensa.

«É impossível que a proibição de utilizar viaturas privadas ou com vidros fumados ou uma escolta de quatro viaturas da polícia para me proteger de todos os lados possa ser decretada sem o seu acordo», acrescentou na mensagem escrita a 26 de Outubro, uma semana depois do atentado sangrento de que havia escapado, horas depois de chegar ao Paquistão.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Daniel de Sá

A primeira vez que olhei para o Daniel foi quando fomos apresentados por um amigo comum, ao tempo vizinho dos dois, na Lombinha da Maia, S.Miguel, Açores. Fiquei a saber que tinha óculos pretos e cabelos brancos, que era educado, escritor, poeta e boa gente. Mas a primeira vez que o vi foi tempos depois, horas quase mortas, no dia da maior procissão da freguesia, que passa sobre tapetes de flores colocadas no chão em desenhos de amor feitos pelas mãos de todos. Eu e ele lá andámos dobrados a desenhar flores mil, rabo apontado ao céu da Maia e coração mais leve que alguma vez me lembro ter tido, falando por mim. No fim da festa e antes da noite cada morador limpou o espaço de rua fronteiro à sua casa, como de costume, ano após ano. À hora que o vi, toda a gente se tinha já recolhido do frio e do chuvisco forte que caía. Eu corria para casa. Ele não. Com a mesma calma das suas manhãs de conversa no mirante da praia do porto, Daniel era o único que arrastava os grandes sacos pretos cheios das flores pisadas de cada vizinho para um monte comum. Sempre ficava a rua mais arrumada. Ele e uma senhora de preto, cada um curvado ao seu. Disse-me adeus como quem pede desculpa e eu acenei-lhe na volta um sorriso. Mas sem que ele soubesse, dizia-lhe olá cá dentro até hoje. Que querem? Eu sou como sou e ele, como é, todos os dias me confirma o acerto do palpite. É o que vos posso dizer do meu amigo Daniel.

Do escritor Daniel de Sá não me atrevo a falar. Falta-me a competência para tanto e sou escasso em conhecimento de tão vasto universo. O que sei e conheço deslumbra-me, mas são gostos. O que dele dizem e escrevem é o melhor, mas são palavras. O que ele quer que se saiba que é está aqui, dito pelo próprio, mais a lista de obras publicadas (por actualizar, sempre). Daniel de Sá é ainda colaborador residente do Aspirina B, onde já disfruta da melhor companhia que algum dia encontrará na blogosfera. Mas, inesgotável e generoso, entendeu que fosse Natal cá na casa e publica hoje a convite aquela que espero seja a primeira gota de um mar de palavras futuras. E isto é o que ele é.

Eu cá estou que nem posso, como imaginam. Mas entendi que não se estraga uma coisa destas com lamechices. Por isso me calo já.


Em baixo: "O Protesto do Burrinho".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.

O Protesto do Burrinho

O conto de Natal era a história de uma criança que escrevera um pedido ao Menino Jesus, e terminava assim: “Não vou pôr na chaminé nem sapato nem meia. Só um papel em branco, para que deixes lá uma palavra para eu usar como quiser, a palavra «de». E assim eu posso escrever que Tu és o Menino Jesus e eu sou um menino de Jesus.” Era um hábito antigo de Félix, poema, crónica ou conto, presença para si obrigatória na edição especial. Mas, nesse ano, as coisas haviam mudado. O director disse-lhe que não haveria edição especial. Nada de meninas pobres sem bonecas, nem de meninos a sonhar com uma bola de futebol, ou de poemas a rimar “luz” com “Jesus” sem uma gota de talento. O jornal ficava muito mais caro e a publicidade não compensava.

Tentou demovê-lo, mas em vão. Era o único jornal da cidade, não perderia assinantes por causa disso. E quase ninguém lia aquela ladainha de lamúrias sobre a condição dos pobres, ou os louvores ao Menino, a Sua Mãe e a São José. Perguntou se era palavra definitiva. “ Está decidido.” Félix desejou boas festas, e desligou o telefone. Nesse momento, o burrinho de barro escorregou das mãos da filha que se esticara para o pôr dentro da gruta, e partiu-se. Ela chorou. A mãe disse que no dia seguinte comprariam outro.

Na loja, a vendedora estranhou. “O seu também se partiu?” Sim, partira-se, mas que é que isso tinha de especial? “Já vendi umas duas dúzias deles hoje, e todos porque se partiram.” Não havia nada para admirar nesse facto, porque se faziam centenas de presépios na cidade, e sempre se quebrava uma ou outra figura, não seria verdade? “O que eu admiro é que ninguém apareceu a pedir um boi, um anjo, um São José, uma Nossa Senhora, um mago... Só burrinhos. Tenho de mandar buscar mais.” Ao chegarem a casa, a menina escorregou na escada e fez-se em cacos também aquele... “Não chores. Voltamos já à loja, meu amor.” Voltaram. A vendedora perguntou: “Vêm comprar outro?” Era. “Já vendi os últimos.” Mãe e filha estranharam agora ainda mais a coincidência. Talvez aqueles burrinhos fossem de barro muito frágil, deveria ser defeito de fabrico. Não era, garantia a vendedora. “E eles só ontem é que começaram a partir-se. Já veio gente aqui comprar um pela segunda e pela terceira vez. Amanhã teremos mais.”

Quando chegou a casa e soube do sucedido, Félix nem podia acreditar. Foi a casa de um vizinho, e perguntou se ele já armara o presépio. Não armara. “Se não fosse muita maçada, poderias mostrar-me o burro?” O vizinho ficou admirado com o pedido, mas foi buscar a caixa onde estavam guardados os bonecos. Ao entrar com ela na sala, um dos filhos apareceu correndo, a fugir do irmão, bateu-lhe no braço e a caixa caiu. Ouviu-se o ruído das figuras a fazerem-se em cacos. Os pequenos pararam a brincadeira e, aflitos, abriram a caixa para a inspeccionar. Tiraram os magos, intactos. Depois Nossa Senhora, São José e o Menino, sem uma beliscadura. Ao anjo não faltava nem uma ponta das asas. Todos os bonecos estavam inteiros, só o burrinho se esfanicara.

Ficou com poucas dúvidas. O burrinho do presépio arranjara aquela maneira de protestar contra a falta da edição especial. Foi ter com o director e contou-lhe o caso. Ele riu-se pensando tratar-se de brincadeira. Mas, perante a insistência e a convicção do amigo, resolveu mandar comprar um burrinho para mostrar como não o deixaria cair nem o boneco se partiria. Quando o tinha na mão, uma bola entrou pela janela e acertou em cheio no burrinho. “Coincidência”, disse. Foi ele mesmo buscar outro. Ouviu a vendedora falar dos muitos que se tinham partido. “Este não se partirá”. Pagou, pegou no boneco e, inesperadamente, espirrou, deixando cair mais aquele. Comprou mais um. Ia a sair a porta quando tropeçou no tapete, e, dessa vez, caíram ambos, ele e o burrinho. “Manda o conto. A edição especial há-de ser feita.”

E foi assim que o burrinho do presépio deu mais uma lição aos homens.

Daniel de Sá

Musharraf cão

A líder da oposição paquistanesa, Benazir Bhutto, morreu hoje de ferimentos sofridos num atentado suicida. Os seus apoiantes no hospital começaram aos gritos «Musharraf, cão» referindo-se ao Presidente paquistanês. Pelo menos 20 outras pessoas morreram na explosão que ocorreu à esquerda do local onde Bhutto se encontrava num comício com milhares de apoiantes.

Benazir Bhutto cumpriu dois mandatos como primeira-ministra do Paquistão entre 1988 e 1996 e tinha regressado a 18 de Outubro ao Paquistão após oito anos de exílio. O seu comício de boas vindas em Carachi foi alvo de um atentado suicida que matou dez pessoas e feriu cento e quarenta, tendo escapado à justa nessa ocasião. Fica a ilustração de Pedro Vieira, publicada aqui em 19 de Outubro passado. Profética, infelizmente. O caminho de Benazir terminou hoje, à uma e um quarto da tarde, hora de Lisboa. A tiro, um no pescoço, outro no peito.

Bom dia. Hoje comecei a praticar a minha posição de grande civismo para o Correia de Campos

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Por ordem de Antonius Correius Campus






















(imagem sacada daqui)

O que é nacional é buuuum!

Há qualquer coisa profunda, triste e genuinamente portuguesa na notícia "Popular encontra engenhos explosivos junto ao rio Tejo". Em toda ela, confiram e verão. No tom casual da descoberta, 'cidadão passeando o cão deparou'. Na justificação atribuída ao próprio, 'o rio estava anormalmente baixo e deparei-me com dois objectos que reconheci de imediato porque lido com eles devido à minha condição de militar'. Na medalha de mérito 'fonte da Brigada de Minas e Armadilhas disse à Lusa que o procedimento do cidadão Jorge Pereira "foi exemplar" ou na linha didáctica 'quem encontrar este tipo de objectos deve fazer o mesmo, ou seja, não tocar nos objectos, sinalizá-los e chamar imediatamente as forças de segurança'.

Mas a parte mais fascinantemente nossa é o parágrafo perdido lá nos fundos da prosa, naquela parte que já só lê quem procura mais que o essencial da notícia, quem busca o fait divers para compor a informação. O colorido local, por assim dizer. E reza assim o dito cujo:

«João Escarola, pescador, conhece as margens do Tejo há mais de 60 anos e, segundo disse à Lusa, muitos mais engenhos do género estarão espalhados pelas margens. "Uma antiga fundição que existia em Tramagal livrou-se dos explosivos atirando-os para o rio depois de um uma grande acidente em que morreram várias pessoas", contou o pescador, garantindo que "nas margens do rio, quando está baixo, é só procurar porque são às dezenas por aí espalhados".»

As linhas que se seguem são três, apenas, um louvor ao cidadão e dois avisos de cuidados a observar quando acontecer outra vez. Quando voltarem a aparecer 'três peças de artilharia, cada uma com um peso a rondar os 8,9 quilos', como agora. Ou quando explodir outra, como a que a Brigada de Minas e Amadilhas fez rebentar numa das três vezes que já foi chamada por ali.

Sobre a fábrica, sobre o Tramagal, sobre o acidente, os mortos, as 'dezenas' e o 'espalhados', sobretudo, nem uma palavra, nem uma vírgula. Foi ponto final e único. Um desabafo, enfim, coisas que se dizem, sei lá. Olhem, acabou como começou, pronto. Um popular encontrou, um popular comentou, um jornalista contou, aquilo nem rebentou, o natal até já passou, isto também já passou, pronto, vá lá, já passou, pronto, vá lá, já passou.

É tudo tão giro, no meu país. Tudo tão assim, sei lá, tão simples, tão tão.

Bom dia. Hoje eu estou vivo.

Só no dia de Natal, a Brigada de Trânsito registou 156 acidentes, cinco vítimas mortais, sete feridos graves e 57 ligeiros.

Durante a «Operação Natal 2007» que decorreu entre 21 a 25 de Dezembro ocorreram 1.187 acidentes de viação dos quais resultaram 15 vítimas mortais, 36 feridos graves e 394 feridos ligeiros.»

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O Pai Natal de Mirandela

Hoje é dia 24 de Dezembro, véspera do Natal de 2007. Noite da vergonha para a Justiça do meu país, que usou o dia para retirar uma criança de três anos aos seus pais afectivos, com quem vivia desde os cinco meses, entregando-a a um Centro de Acolhimento Temporário (CAT) que 'deverá promover a aproximação da criança à mãe biológica'. Em declarações à Lusa, José Policarpo, o pai afectivo, disse que foi informado pelo tribunal na passada sexta-feira da decisão de lhe ser retirada a criança no dia 24 de Dezembro, sendo portanto este o primeiro Natal do Miguel longe da família a quem foi entregue pela própria mãe. Isto porque em Novembro deste ano um juiz do Tribunal de Mirandela decidiu devolver a criança à mãe biológica, apesar dos relatórios do Instituto de Reinserção Social (IRS) valorizarem a ligação afectiva entre o casal Policarpo e o Miguel. Mas decidiu mais, o ilustre magistrado. Entendeu que era imperativo que fosse no dia 24 de Dezembro a hora da separação. Hoje.
Assim, a esta hora que escrevo, o pequeno Miguel estará a ter a sua primeira aula práctica de Justiça Portuguesa, primeiro semestre do resto da sua vida. Estará a conhecer os seus novos amiguinhos e amiguinhas e as novas senhoras e senhores que são todas e todos muito simpáticas e simpáticos e gostarão decerto imenso dele como gostam de todos os outros miguéis que o destino pôs neste mundo de merda com o carimbo de indesejados, pouco desejados, desejados de vez em quando ou à vez, chamem-lhe o que quiserem. Por entre as suas desgraças pessoais, estes são meninos com uma única sorte a protegê-los, qual estrelinha que guiou os Reis até ao perdido estábulo da cristandade. Têm todos a Justiça nacional de olho nos seus problemas, sempre atenta ao 'superior interesse do menor', como reza a Lei, explícitamente. E o Miguel, em especial, tem mais sorte do que todos, que o pai natal, como se pode ver, mora em Mirandela.

Eu cá desejo a todos um feliz Natal e um próspero Ano Novo. Em especial ao senhor doutor juiz que assinou a ordem para este castranço a frio, num gesto tão natalício e que tanto honra a magistratura em geral e Portugal em particular. Que a consoada lhe assente na perfeição são os meus votos. Que os doces o consolem e o licor lhe ruborize a face branca de emoções. E que a sorte do Miguel não lhe retire sequer um segundo da concentração que vai necessitar para ouvir esta noite, por entre arrotinhos de satisfação, as leituras do evangelho na missa do galo a que não faltará por certo, como bom cristão. Depois dormirá o soninho dos justos, em paz com a vida, consigo e com o céu. Deus, estou certo, perdoar-lhe-á todos os pecados. Eu é que não.

Bom dia. Hoje estou jingóbéu.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Claro.

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens, morder como quem beija.
É ser mendigo e dar, como quem seja Rei do reino de áquem e de além dor.
É ter de mil desejos o esplendor e não saber sequer que se deseja. É ter cá dentro um astro que flameja. É ter garras. E asas de condor.
É ter fome. É ter sede de infinito (por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...). É condensar o mundo num só grito e amar-te, assim, perdidamente. É seres alma e sangue e vida em mim.
E dizê-lo cantando a toda a gente, claro.

Separados à nascença

Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém

Venho da terra assombrada
de um ventre que ninguém tem
o nome do pai é nada
e nada é o nome da mãe
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci
Dispenso o que me é devido
paciência, já cá estou
só não queria estar perdido
sem saber para onde vou
Trago boca pra comer
e olhos pra desejar
tenho pressa de viver
que a vida é água a correr
Fome já não tenho há dias
e os olhos, só de chorar,
enchem-me as horas vazias
com a promessa do mar
Venho do fundo do tempo
não tenho tempo a perder
minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada
Venho do fundo do tempo
e tempo é o que mais tenho
minha barca aparelhada
afundou-se em pouca sorte
e com ela o passaporte
para a fronteira fechada
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham
nem forças que me molestem
correntes que me detenham
Os ventos não me são bons
as marés pouco me arrastam
e as forças que me molestam
são correntes que me matam
Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu
Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu
Com licença com licença
que a barca se fez ao mar
não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar
com licença com licença
com rumo à estrela polar
Desculpem, dêem licença
tenho outra barca comprada
que eu quero que quem me vença
mate o meu corpo no mar
desculpem, deixem passar
volto para a terra assombrada.


(Rómulo de Carvalho, in 'fala do homem nascido' 1972)
(rvn, hoje, prenda de natal para o cantigueiro)

Não, obrigado.

Na rua dos meus ciúmes
moram todas as paixões
que nunca com brandos lumes
(sempre em acesos vulcões)
cozinhei no meu sentir;
nunca quis por lá morar
mas hoje então nem pensar
não quero sequer lá ir.

È uma rua de perigo
pedaço de um mau caminho
onde não se vai sózinho
(e muito menos comigo)
depois do anoitecer;
e mesmo antes é de ver
com o olho bem aberto
se não existem por perto
tentações de desvario,
dessas onde se tropeça
e lá se perde a cabeça
só por um breve arrepio.

Por isso mudei de rumo
e troquei a volta aos passos
que vou dando nas paixões;
é que ruas há milhões
umas melhores, mas poucas,
com mais beijos e abraços,
outras becos de fracassos
espalhados pelo chão...
mas ruas de paixões loucas
de ciúmes e de fado
são um passeio acabado.
Muito obrigado, mas não.

... para todos.














(cortesia da cabra de serviço)

E os cegos, pagam bilhete?

«A viagem custa cinco euros e é ideia da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) que, desde 17 de Novembro, apostou num percurso diário, três vezes por noite - às 20.30 horas, às 21.30 horas e às 22.30 horas - para mostrar aos habitantes e aos turistas, nacionais e estrangeiros, as iluminações que decoram as ruas do Porto e Gaia. »

Bom dia. Hoje estou falador.

Ele há coisas levadas da breca, surpresas que só Deus sabe. Coisa rara e nunca vista, deu-me agora para andar a descobrir dias nos sítios mais improváveis de se encontrar 24horas de jeito todas juntas, assim logo à primeira vista das minhas melhores expectativas. Quando julgava que já sabia tudo sobre o que vai ser, sobre aquilo que sou, a rotina das marés, sol e lua à vez, sono no meio, um dia depois do outro e antes do seguinte e todos folhas brancas para um retrato repetido de mim mesmo, quando achava difícil achar, de tão perdido, eis que tropeço em manhãs improváveis, em tardes estranhas e em noites que nem vos conto. Um alarido nos meus ventrículos, bate que bate, pumcatrapum. E eu lá pelo meio, como no CSI, tudo em cores brilhantes, azuis e vermelhos, zoom e panorâmica e efeitos sonoros. Não é que o circo tenha descido à cidade, mas lá que toca a banda em cada esquina do inesperado, isso confirma-se. São fases, só pode ser. Pois que seja infinito enquanto dure, como dizia o velho que sabia das coisas, que eu cá assino em baixo e vou no samba.
Mas entretanto atenção, muita atenção! Para trás, invejosos que já sonham romance! Vade retro, lascivos que já sonham molhado! Pirai-bos azinha daqui, cambada de morcões que já sonha dar norte à minha fantasia! Ide dar norte a outro que eu cá vou andando assim assul, muito obrigado mas não obrigado.

Uffff.
Pronto.
Já está.
Um bom desabafo ajuda sempre.
Fico feliz por termos tido esta conversa.

Bom dia a todos.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Quando a cauda abana o cão

Acabei de papar o Jornal Nacional da TVI. Quase todo. Fui espreitando o Braga, a tempo de ver aquele belíssimo segundo golo que quase deu para perceber porque raio enlouquece meio mundo com o futebol. Mas regressei à TVI em boa hora, mesmo a tempo de assistir à peça de fecho do jornal. Era sobre o Pai Natal, o que nem por isso me matou de espanto. Mas o pai natal escolhido apanhou-me de surpresa, tenho de admitir. E fez-me sentir aquela coisa que nos aperta a alma quando se é jornalista, aquele falso arrepio que nos alerta para a presença de coisa rara, one of a kind. Passo a explicar.

Com todo o mérito para a produção da informação, a TVI descobriu um pai natal nas raias da perfeição audiovisual. Um senhor, chamado Fernando Nobre, 73 anos, avô de dois, bem vestido a rigor e melhor ornado com umas longas barbas, tão brancas como genuínas. Umas belíssimas barbas, diga-se em abono da verdade. E depois a voz, certa para a fantasia do pai natal de qualquer pessoa, perfeita nas deixas e no tom, exacta na postura e absolutamente correcta na atitude. Num tempo que espirra nojo nas parangonas dos jornais só com aquilo que se vai descobrindo, fora o encoberto nas sombras de cada um, ver este velho sentar crianças que lhe são estranhas no colo, beijá-las e acariciá-las, foi ter o privilégio de recordar como deveria ser sempre o carinho entre gente, nova ou velha, seja Natal ou seja Agosto.

Mas mesmo com todos estes atributos, toda esta dimensão da figura humana escolhida para colorir o boneco natalício que era objectivo da repórter quando saiu da redacção, encomenda debaixo do braço, poderia muito bem ter passado despercebida por entre o vermelho da farda de Fernando e o brilho de fundo das luzinhas festivas da quadra solene. O que fez de facto a diferença neste caso foi o tipo de abordagem que a autora deu à peça. As perguntas. Os comentários. Os pormenores exaustivos, como por exemplo os 34 microsegundos por chaminé que um grupo de cientistas suecos decidiu ser o tempo estimado para a permanência do Pai Natal em cada casa do mundo, fazendo as contas a uma viagem em sentido contrário à rotação da Terra e sem partir da Lapónia mas sim do Querdistão. Incrível, não é? Jornalismo de investigação. Rigor matemático versus sapatinho na chaminé, um cocktail explosivo para o noticiário das oito. Tudo pontuado com as palavrinhas do Pai Natal e embrulhado entre os planos de corte e a palha da locução. Tudo trabalho, no fundo, apenas trabalho, ou a mais elementar necessidade de editar uma peça de fecho para o jornal nacional sobre o tema mais editado da actualidade: o Pai Natal.

O resultado final acabou por surpreender, no geral. Afinal não é fácil fazer este tipo de peças da época, baralhar e voltar a dar sempre com originalidade cem por cento feliz. A jornalista em causa, cujo nome não cheguei a ver, com pena, nem por isso ficou assim tão mal no retrato, poderia ter sido pior, muito pior. Não envergonhando, acabou por cumprir embora sem brilho. Mas o que me causou o tal falso arrepio da profissão, o que me deu de facto o alerta de invulgaridade foi mais uma vez o personagem em si, o tal Fernando das barbas brancas, 73 anos, avô de dois, que se prestou à tortura da tolice informativa com o mesmo sorriso verdadeiro que deu a cada menino e menina que lhe puxou as barbas, com força para ver se eram mesmo verdadeiras. »Chego a ficar com a cara toda vermelha no outro dia», contou. Pois o trabalho de reportagem que eu vi era mais ou menos a mesma coisa, salvaguardando as proporções, claro. Mas para cada puxãozinho verbal, para cada pergunta de chacha, para cada graça sem graça, para cada silêncio até, aquele ancião teve uma saída airosa e lúcida, uma expressão de inteligência e bom gosto, tão acima da vulgaridade que dir-se-ia puxado pelas renas da bondade e da pureza de alma, deixando nos céus da noite informativa da TVI um eco de ho ho ho's de simpatia.

Confesso que me bateram as saudades do 'picanço' das redacções, das corridas do fecho, do imenso milagre da televisão, que todos os dias ensina a vida a quem é desta arte. Neste caso em particular aprendi uma lição rara vestida de pai natal. Um entrevistado que mostrou ao seu entrevistador e ao país inteiro que, com jeitinho e humildade, até pode ser a cauda a abanar o cão e não o contrário.

Voando por um ninho

É natal, é natal, lá lá lá lá lá...


É tão porreiropá andar de metro uma vez para a fotografia!





Estupidez total

Gargalhada total

«Fidel Castro fala pela primeira vez no futuro»

Bom dia. Hoje estou gelado.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

I'm dreaming of a white Christmas

«IP4 e A24 cortadas ao trânsito devido à queda de neve»

Açores porque sim.

Dezembro é Dezembro. É sempre assim, ou sou eu sempre assim. È o que é.
Com o avô de vermelho ainda vou lidando, m
as na parte do menino Jesus confesso algumas dificuldades. Não é por mal, antes pela ausência do bem. E pelo brilho das luzes, talvez, muito jingle bells e festa rija. Por isso me lembro tanto do sentir açoriano cada vez que o assunto é esta imensa aventura da fé dos homens no divino.
O outro lado da festa, por assim dizer.

Arrepia. Passam em baixo da minha janela, de noite e de dia, na chuva e no sol que acontecem à vez em S. Miguel. As vozes em coro com os passos fazem o tal cantar que arrepia. É o carisma da fé, a força que move um mundo de almas em redor da crença comum que Deus existe. E da esperança particular que Ele se lembre e cuide da aflição de cada um de nós. Para tanto oferece-se o corpo e o espírito, o sacrifício físico de um e uma prova extrema da humildade do outro perante a grandeza divina. Exposto e despojado, o romeiro dá-se ao olhar de todos como uma evidência da força do querer que existe em cada ser humano e que de facto pode mover montanhas. Nem que seja com uma pá pequenina, daquelas que levam pouca terra de cada vez. Tão pequena como cada passo que faz a longa caminhada da romaria. O cantar, esse, anuncia que chegar ao final é coisa certa, como um tilintar de riqueza.

Sereno ou aflito, o ser humano desde sempre dobrou o joelho á omnipresença de algo que foi descobrindo á sua custa não conseguir compreender, muito menos controlar. Talvez por isso a relação dos homens com Deus foi tendo, ao longo da história da humanidade, as mais variadas características e alguns episódios caricatos, para ser suave no adjectivo. As famosas bulas Papais que limpavam por decreto os pecados da nobreza com a prata dos plebeus são disso um bom exemplo, ou os monumentos megalómanos e outros bezerros de ouro oferecidos como moeda de troca por mil imperadores em busca dos favores mais diversos. É a face patética da impotência e do medo levado ao extremo. Pode até ser um dobrar de joelho, mas não tem seguramente nada a ver com humildade. E não tem seguramente nada a ver com aquilo que leva o romeiro pelos caminhos de S. Miguel.

Os testemunhos que tenho ouvido, de viva voz, dão-me um entendimento diferente do fenómeno. Falam-me de outras coisas, outros valores, outras posturas no ajoelhar. Falam de aflições, claro, deixam antever medo, alguns, claro mais uma vez. Quem não tem medo? Eu tenho. Contam-me promessas de sacrifício, teimas de contrição, caminhos de dor e muito, muito sofrimento. Falam de procura, também, e de encontro, a maior parte. Na solidão dos passos mais escondidos aos olhares dos outros, entregues apenas a si próprios e aos seus pensamentos, colocados pelo rigor da própria natureza na correcta dimensão da sua pequenez de meros humanos, é quando me dizem ter conhecido o mais perto que alguma vez conseguiram estar do estado de graça que lhes faltava e pelo qual saíram á estrada. E assim regressam renovados e mais capazes.

Na madrugada passada o cantar chamou-me à janela. Vi o rancho passar sem me ver. E lembrei-me de um bom par de figuras tristes que fiz em conversas de amigos quando, pateta e convicto, repeti que gostava de ir numa romaria. Como quem diz que gosta muito de folclore e comida típica. Como quem diz uma outra coisa qualquer. Tola bravata! Esta madrugada vi o quão longe me encontro de estar á altura da caminhada, neste desencontro em que vivo, comigo e com o céu, ao ver passar aquela gente que me parecia tão perto e no entanto caminhava tão longe de mim. O único momento de contacto foi no arrepio, demasiado breve para uma partilha digna desse nome. Depois voltei para o meu mundo pequenino de coisas importantes, enquanto eles seguiam o caminho importante das coisas pequeninas, como nós, sempre a cantar. Eu não fui, mas como podem ver o eco ficou comigo.