Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quinta-feira, 29 de novembro de 2007

As gargalhadas do China

Recordo a cara do homem como se fosse hoje. Contou-me a história três ou quatro vezes com todos os pormenores. Como tinha sido o primeiro contacto - e por iniciativa sua, jurava, que o outro nunca o abordou directamente. Depois a história do projecto que iria transformar Santa Apolónia num complexo residencial de luxo. As plantas, as certidões. E a sorte que tinha tido, logo ele, modesto sargento, em ser dos primeiros a comprar os direitos de duas fracções duas, direito e esquerdo, numa das torres com vista para o Tejo e com Alfama e o mundo aos seus pés. Deu um pequeno sinal, claro. Dois, para ser franco, um para cada fracção. Eram as suas economias de meia vida. E é claro que exigiu recibos, julga que eu sou parvo ou quê? Os mesmos que me mostrava agora, bonitos papéis, ainda dentro de uma daquelas capinhas de plástico próprias para coisas importantes e oficiais. Passaram quase vinte anos sobre a data desta entrevista, mas eu nunca mais esqueci a história deste Guarda Fiscal a quem um burlão habilidoso vendeu a Estação de Santa Apolónia em Lisboa.


Hoje lembrei-me dela outra vez. Foi depois de ler os pormenores da nova e rocambolesca aventura de 'China', um dos evadidos da cadeia de Guimarães há três meses atrás, apontado pelas autoridades não só como cabecilha da fuga colectiva, mas também como o mais perigoso de todos. Tem 18 anos, o rapaz. É líder incontestado de um activo gang de assaltantes do Vale do Ave e foi novamente interceptado e detido, na passada segunda-feira em Santo Tirso, por um militar da GNR a quem estava a tentar furtar o carro. "Como não tinha documento, forneceu a sua identificação verbalmente. Deu o nome de um irmão e o militar não desconfiou", explicou uma fonte policial ao JN.


O "China" foi então levado para esquadra da PSP, já que a detenção tinha ocorrido na área de jurisdição daquela polícia, onde foi elaborado o normal expediente. Mas nem ali foi reconhecido. Depois foi levado a tribunal, onde foi interrogado, ouvido e sentenciado a uma medida de coação de apresentações semanais no 'posto policial da sua área de residência'. Recomendaram-lhe muito que não faltasse, se faz favor. E mandaram-no embora, claro, na paz de Deus. Só mais tarde, muito mais tarde, é que as autoridades, a partir do visionamento de fotografias, concluíram de quem se tratava afinal. Tarde demais.


Eu cá adoro Lisboa antiga. Gosto de seguir o rio, nos meus passeios a pé pelas vidas dos outros, de olho aberto mas espírito ausente, quantas vezes, a pensar na pobre da bezerra que lá se foi, coitada. Juro que daqui para a frente, quando passar por Santa Apolónia, vou parar o passo um solene momento em memória da saloíce alheia. E correr com o olhar as varandas panorâmicas das lindas torres não menos, em busca do GNR de Santo Tirso, dos PSP da esquadra local, do procurador e dos juizes que são agora os novos vizinhos do meu Guarda Fiscal de há vinte anos. Lá estarão todos, à janela da imensa torre da estupidez humana, com vista para o Tejo e Alfama e o mundo aos seus pés. E o China a rir à gargalhada, evidentemente.


1 comentário:

Anónimo disse...

Trabalho cumprido, meu filho. Trabalho cumprido, meu velho.
O homem não foi detido? O Homem não foi a tribunal? Os juizes não ajuizaram? Não lhe foi dada uma medida a cumprir?... Os ordenados dessa gente não estavam na conta no final do mês?
Então? Está tudo certo, não está?
aonde é que está o mal!? Aonde!?
Tamos na fim do mundo!