Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Tremor de terra, temor do céu.

Desde que o mundo é mundo que o Homem dobra o joelho e diz 'santinho' sempre que o divino espirra. Nos Açores, o divino constipa-se com frequência e espirra com uma força que assusta. Vem também daí a cepa das nossas gentes, tementes a Deus e sempre confiantes na existência de um amor maior que as abraçará na hora certa. Daniel de Sá não assinaria estas palavras, que é o meu sentir a ditar. Mas assina estas que se seguem, mais e melhores para descrever a hora em que céu e terra se tocam por um instante. Quando por um instante apenas, por um longo, longo instante, ninguém sabe muito bem de que lado vai estar no instante a seguir.
(RVN)
Em baixo: "Tremor de terra, temor do céu".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.


Ninguém tem memória de mortos ou feridos na freguesia por causa de terramotos, e há muros velhos com décadas ou séculos, casas feitas de pedras pequenas, muitas trazidas do calhau da Gorreana ou de outros lugares da costa, e coladas umas às outras com barro, que se mantêm de pé apesar dos tremeliques do chão. Mas um tremor de terra apavora e devolve aos homens, se a têm esquecida, a consciência da sua fragilidade. O tremor de terra é breve enquanto acontece, mas tarda muito a passar depois de ter acontecido, e é a memória que o faz longo. Uns segundos apenas (dez... doze... catorze...), mas ficam as suas sensações recordadas, revividas: o chão que se sacode debaixo dos pés, as portas e as janelas que rangem, a armação da casa que ameaça desmoronar-se como ossos de um monstro gigantesco a estalarem, o tecto que se move em ondas invertidas, as chávenas que se balançam com o som de campainhas, uma leve vertigem, o urro final em que se julga que tudo vai desabar sobre a gente e que a gente se vai misturar aos escombros de um mundo desfeito. E, de repente, a quietude total, enquanto se vão calando as campainhas, como se um tropel de cavalos enlouquecidos se tivesse aproximado num galope subitamente interrompido.

António sentiu o maior tremor da sua vida, estava ele na igreja, uns minutos antes de começar o Te-Deum. Acabara de entrar com a mãe e as irmãs e ainda rezava saudando o Santíssimo exposto. Percebeu primeiro uma vibração das tábuas do estrado debaixo dos joelhos, como a de um sobrado quando alguém, sentado numa cadeira e com a ponta do pé assente no chão, agita a perna de cima para baixo em movimentos muito rápidos. Não entendeu de imediato do que se tratava e, olhando à volta, notou o mesmo ar de admiração em rostos que se viravam também para um lado e outro à procura de explicação. Então as grossas pilastras, que dois homens mal conseguem abraçar, foram sacudidas violentamente, com a nave da direita a parecer que tombava para sul e a da esquerda para norte. Os lustros, com as velas todas acesas, balançaram num chocalhar de pingentes, deixando rastos de fumo e fogo a riscar o ar. Um ronco tremendo subiu, como se o chão estivesse a abrir-se, as pilastras foram sacudidas com mais violência para fora e para dentro, o arco da capela-mor torceu-se como roupa molhada a ser batida pelas lavadeiras, os escarradores chocalharam nas lajes, o petróleo respingou dentro dos candeeiros, e um estrondo abalou a igreja desde os fundamentos, provocando um estoiro no tecto, ao mesmo tempo que uma nuvem de cal, que pareceu por momentos ser a abóbada a desabar, caía sobre o povo em pânico, que gritava aterrorizado, com algumas mulheres a saltarem para cima das grades do cruzeiro ou a subirem para as cadeiras ainda vazias que pertenciam às senhoras de estatuto e lhes marcavam e reservavam presença e comodidade junto ao altar do Senhor. Fugiam do medo que vinha do chão como se o perigo não estivesse no alto. António continuava de joelhos, sem tempo ainda para ter medo, e, quando viu cair a cal, julgando que era o tecto, apenas pensou: “agora é que eu vou saber como se morre num tremor de terra.” Dito isto para si mesmo, verificou que a nuvem branca fora apenas cal e que tudo permanecia tão seguro e quieto como se nada de anormal se tivesse passado. Mas as pessoas que vinham na rua a caminho da igreja mal se aperceberam do tremor. Houve quem se lembrasse de ter ouvido ranger uma cancela ou de um qualquer outro ruído estranho, mas sem ligar tais sons à sua causa. E não mais do que isso.

2 comentários:

Anónimo disse...

Daniel de Sá:
O seu escrever comove-me não raras vezes. E fico muito contente de o ver em tão boa companhia neste blogue já o disse repetidas vezes e hoje ainda em dois comentários em outros blogues. Os meus parabéns por mais este conto tocante e bem escrito, como sempre.

Anónimo disse...

Rui, afinal há outra Rosa! E que Rosa, esta! Meu Deus, como vou agradecer o seu perfume?
Não sei. Por isso apenas pasmo.
Obrigado, querida Rosa.
Daniel