Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A morte lenta da pescada de Alijó

A história do morto de Castedo é de morrer a rir. A aventura deste morto à espera , ontem contada no Jornal da Noite da SIC pela transcrição pura e dura das chamadas telefónicas entre o INEM e os Bombeiros de Favaios e Alijó, cá para mim merecia o Grande Prémio qualquer coisa, na ausência de um Pullitzer nacional. O repórter mais genial não conseguiria traduzir, só por palavras suas, nem um milésimo da confrangedora enormidade do ridículo desta situação. Nada como ver e ouvir, saborear cada segundo desta emergência, com a tranquila não-urgência do facto consumado. Com o assunto já morto, passe o termo. Imaginando sem esforço que se trata do grande sketch de estreia dos Gato Fedorento na SIC, um passe mágico de Nuno Santos para por o país a bater palmas de pé. Só assim se resiste à indignação, também. Recordemos o essencial.

Tudo começa com uma chamada para o 112. Emergência na linha. Uma mulher pede socorro porque um homem caiu em casa. A operadora do CODU faz o que lhe compete, pergunta. Onde fica? E a morada? E o telefone? A mulher que ligou é um prodígio de confusão e pede ajuda lá em casa. 'É só um momento, fachavor'. 'Tou?' É o irmão da vítima, embora pouco saiba dizer sobre ela. Idade ao certo não sabe, número da porta também não, diz que ele estava doente, (e qual era a doença? olhe, caiu!). Ah, e mais: diz que o homem está morto. A operadora do INEM duvida do mano como Portugal duvidou dos McCann. Tanta frieza e sem lágrimas? Só pode ser mentira. Vai daí quer saber mais, já pergunta em tom desconfiado. 'E ele mexe-se?' 'Não', diz o mano. 'Mas estava doente?' 'Sim'. 'Com quê?' 'Caiu em casa, deitou muito sangue pela boca'. 'E respira?' 'Ó minha senhora, ele tá morto!' Em desespero, a operadora arrisca: 'Isto não é uma brincadeira, pois não?'.

O tempo vai passando, entretanto. Se o morto estivesse vivo estaria mais morto que vivo, e se estivesse mesmo morto também podia esperar, não tem mal. O INEM liga finalmente para os Bombeiros de Favaios, para fazer seguir o socorro. 'Boa noite!' 'Diga?' 'Boa noite!' 'Ah, sim, diga'. A operadora conta a história e leva um ou dois minutos até perceber que está a falar sózinha. 'O senhor ouviu alguma coisa do que eu disse até aqui?' 'Não, é que eu estava ao telemóvel, diga lá fachavor'. A operadora conta tudo outra vez, mais minutos, mais partes gagas. Quando acaba, ouve a pergunta da noite. 'Então e agora o que é que eu faço?' 'Desculpe, eu estou a falar para os Bombeiros de Favaios, ou não?' 'Sim, pois, sim, é daqui, agora eu faço o quê?' 'Ó senhor, manda uma ambulância, então?' 'Sim, pois, mas é que eu estou sózinho no quartel...' O tempo continua a passar e a operadora começa a passar-se, ela própria. Despacha o bombeiro solitário de Favaios e liga para os Bombeiros de Alijó para resolver o problema. 'Tou?' 'Boa noite, é para mandar uma ambulância para Castedo, um ferido grave que caiu em casa.' 'Bom, mas... é que eu estou sózinho no quartel...' 'Então e se houver um fogo?' 'Ah, aí toco a sirene'. 'Então não arranja um tripulante?' 'Só se telefonar a um amigo, ou assim...'

Se uma imagem vale mil palavras, esta reportagem vale por todos os milhões de palavras que têm sido gastos a tentar retratar a reforma da saúde e a bondade dos argumentos do senhor ministro. Esta reportagem vem mudar tudo, para mim. Quando, por exemplo, me pedirem dados concretos para comprovar a fraca consistência desta visão iluminada do nosso António, eu vou esquecer as longas tiradas de reflexão e vou simplesmente remeter quem pedir a explicação para este video que tudo explica. Vinte e oito minutos do Jornal da Noite da SIC tiveram o condão de explicar ao país qual é o verdadeiro rosto da emergência médica no terreno acidentado desse interior desprotegido dos mínimos pela reforma de Correia de Campos. Assim se vê e se explica a desarticulação, a fragilidade dos meios e a falta de preparação e escassez do factor humano desta reforma. Assim se vê e escuta como podemos morrer de azar. E com o país a rir.

Entre o primeiro telefonema para o 112 e a chegada da VMER dos milagres, passou um tempo despropositado e aconteceu um mundo de confusão e caricatura nesta emergência de anedota. Sobra agora o grande argumento político: que o morto morreu logo na queda, que já não havia o que salvar, tipo pescada, que antes de ser já o era. Será certo que o homem tenha morrido na queda, sim, pronto. Mas eu cá digo que foi isso mesmo que o salvou, com este humor negro com que me deixam estas notícias, ou decerto morreria da morte lenta e estúpida que é esta reforma do impagável Campos. Outra pescada, no fundo. Antes de o ser, já era.

8 comentários:

Anónimo disse...

Esta é efectivamente a imagem do país real, que só espanta os mais distraídos.
É assim na saúde e é assim na segurança. Experimente ligar de noite ou aos fim de semana para algumas esquadras da GNR e ou está apenas uma pessoa de serviço a atender o telefone ou aparece uma gravação a dizer que apenas funcionam de segunda a sexta até às 5 da tarde.
De tão trágico até dá para rir...
Carmo

Anónimo disse...

pois, o país ri-se. ri-se porque o interior é um deserto e é por isso que não tem o SAP aberto. o país ri-se porque somos poucos e Vila Real é "perto" (dizem eles). o país ri-se porque os bombeiros não têm preparação e porque a senhora do INEM disse que estava lixada. disse e disse muito bem, estamos mesmo lixados. e, sim, ainda bem que o senhor já tinha falecido

samuel disse...

O que é dramático é que se eu aparecesse numa produtora de comédias para televisão (não, não é mais um contributo para a discussão sobre a RTP/A) com este projecto de guião para uma série, os produtores certamente certamente que me mandariam ir dar uma curva. Rir é bom e um bocado de nonsense é giro, mas é preciso que a comédia mantenha alguma espécie de ligação à realidade, não é?

Anónimo disse...

A Saúde e a Educação não devem servir para o Estado ganhar dinheiro, nem sequer para o poupar. Por isso Portugal é cada vez mais a ocidental praia lusitana. O resto permance quase só para que o mapa histórico se mantenha.

Peliteiro disse...

«Tenho a certeza que dentro de dois, três meses, ou menos até, as populações compreenderão que fizemos o que tínhamos que fazer para o bem das próprias populações.» Correia de Campos em Dezembro, a propósito do encerramento do SAP de Alijó.

Rui Vasco Neto disse...

carmónimo,
~trágico, de facto. mas a mim não me dá para rir, uso é o riso para não chorar.

susana,
foi a sorte dele, já te disse!

sam,
vai à rtp A, quem sabe? dá-lhes música, porra, não é o que tu fazes?

daniel
pára de dizer mal. insuportável que tu és!

mário,
carrega um nome de grande peso, meu caro, veja lá os autores que cita.
digo eu, claro.

Anónimo disse...

Hoje vi na televisão a história trágica de uma mulher de 31 anos que não podia ter acontecido.

Seis da manhã. Ela desmaiou. O marido ligou 112. Em vez de uma vmer, uma ambulância, uma moto ou um triciclo de emergência, recebeu "instruções" para ser ele a reanimar a doente.

Ela voltou à consciência, despediu-se dele com palavras de amor e voltou a desmaiar. Ele voltou a ligar 112 e parece que foi maltratado pela insistência (já alguém reparou como o CODU é malcriado?).


Duas horas depois, quando lá chegaram os bombeiros, a mulher estava morta. Foi a doze minutos do Hospital de Setúbal.

Rui Vasco Neto disse...

cenes,
pois. porra, pois.