Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


terça-feira, 29 de abril de 2008

A Ópera em Portugal - Primeiros tempos / o triunfo (III)

E pronto, sem mais comentários ou introduções, aqui vos deixo a parte terceira deste trabalho de Daniel de Sá sobre a ópera no nosso país, exactamente aquela que fala dos primeiros tempos e dos primeiros nomes com responsabilidades na introdução deste novo e grandioso espectáculo no Portugal do século XVIII. Retrato de um triunfo.

Em baixo:
"A Ópera em Portugal - Primeiros tempos / o triunfo"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Parte I : As origens da ópera
Parte II : Introdução da ópera em Portugal
Parte III : Primeiros tempos / o triunfo


A principal figura de referência musical na primeira metade do século XVIII em Portugal (para além do extraordinário compositor, cravista e organista que foi Carlos Seixas) é Francisco António de Almeida, e não apenas pelo facto de ter sido o autor que estreou a ópera no nosso país. Tendo ido estudar para Roma a expensas da Coroa, onde, ao que se pensa, teve como mestre Ottavio Pitoni, logo aí fez sucesso com o Pentimento di Davidde, em 1722, e com a oratória Giuditta, em 1726, cuja partitura foi encontrada há poucas décadas na Biblioteca de Berlim, e que é a mais antiga peça portuguesa para orquestra que se conhece, incluindo, para além das cordas, um oboé, duas trombetas e cravo. No seu regresso a Lisboa, oferece a D. João V, em 27 de Dezembro de 1729 (festa litúrgica de S. João Evangelista, padroeiro do rei), “Il Trionfo d’Amore”, um divertimento pastoral.

Foi também organista e provavelmente mestre da capela da Patriarcal. Para além de umas quantas obras mais, que serão com certeza uma pequena parte do trabalho deste compositor, nada se sabe da sua vida, nem sequer quando nasceu nem o ano da sua morte. Mas sobre ele, a respeito de La Spinalda, apresentada durante o IX Festival Gulbenkian, o musicólogo francês Claude Rostand escreveu o seguinte: “Sem dúvida esta comédia musical está realizada à base de receitas e de fórmulas, tanto no plano cénico como no plano musical. Mas, para a época, tais receitas são bastante novas: são as da ópera cómica napolitana. Nesse tempo, elas não tinham dado ainda todos os frutos e encontravam-se no estado de frescura das experiências e da inovação.” E, mais adiante, acrescenta: “Francisco António de Almeida apresenta-se, pois, como um homem de vanguarda, e se os processos que utiliza nos parecem hoje um pouco banalizados pelo emprego que deles se fez posteriormente, o compositor português é o primeiro a ter-lhes dado vida com uma verve singular.”

António Teixeira, nascido em 1707 e que foi o primeiro aprendiz de música a ser mandado para Itália por D. João V, quando tinha apenas dez anos, foi um compositor e cravista de grande talento e contribuiu para a popularização da ópera em Portugal. Um contemporâneo seu, em carta escrita em 1754, faz-lhe um elogio que parece ser póstumo, pelo que se supõe que terá morrido provavelmente no ano anterior, embora haja quem presuma que a sua morte se deveu ao terramoto de 1755. Em colaboração com António José da Silva (filho de pais presos pela Inquisição por serem acusados de judaísmo, quando tinha sete anos, o que o fez vir do Brasil para Lisboa) apresentou em Outubro de 1733, no Teatro do Bairro Alto, aquela que há quem considear a primeira ópera cantada em português. Embora não se trate de uma ópera, no sentido rigoroso do termo, foi assim que a classificou António José da Silva. O texto deste autor (intitulado Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança) era em prosa, e foi representado com o recurso a fantoches, havendo António Teixeira composto para o mesmo algumas partes musicais.

Seguiram-se, destes dois artistas e com igual processo de representação, As Guerras do Alecrim e da Manjerona, no Carnaval de 1737 e, ainda nesse ano, As Variedades de Proteu. Presume-se que António Teixeira terá mais tarde revisto a música que compusera para um teatro de tão limitadas condições. A colaboração entre os dois artistas acabou tragicamente com a morte de António José da Silva, ele também acusado de judaísmo (aliás ficou conhecido como “o Judeu”) e condenado pela Inquisição em 1739. Do próprio António Teixeira nada de concreto se sabe a partir desse tempo. Mas estava conquistado para a ópera um público de baixa condição social, enquanto os nobres e a burguesia a iam transformando na sua nova paixão.

Com um público definitivamente conquistado, e a nobreza e a burguesia entusiasmadas com essa nova maneira de se divertirem, os compositores portugueses passaram a ter um novo campo para exercitar as suas qualidades. Foram criados novos teatros (além do real, na Ajuda, o da Academia da Trindade, no Bairro Alto, e o da Rua dos Condes) pelo que a ópera deixou de ser um privilégio do Paço Real da Ribeira e do teatro do palácio de Salvaterra de Magos, que fora construído, no século XVI, pelo infante D. Luís, irmão de D. João III, a quem o rei tinha oferecido aquela vila. (No Teatro da Trindade, e depois no da Rua dos Condes, a companhia de Alessandro Paghetti apresentou vários espectáculos de ópera, entre os anos de 1735 e1742.)

Na segunda metade do século XVIII vários compositores de grande talento se destacaram. João de Sousa Carvalho foi o mestre incontestável da música portuguesa durante a sua relativamente breve vida activa. Tendo nascido em Estremoz, em 1745, foi aluno do Colégio dos Reis Magos, em Vila Viçosa. Tais foram as capacidades que demonstrou que foi enviado para Nápoles a fim de continuar os estudos, privilégio que normalmente era concedido apenas aos alunos da Patriarcal. Depois de ter passado seis anos no Conservatório de Santo Onofre, de Capuana, regressou a Portugal onde foi nomeado professor do Seminário Patriarcal de Lisboa. A sua estreia aconteceu com a ópera cómica L’Amore Industrioso, um sucesso tão grande que foi levada à cena nove vezes, o que não acontecera nunca. Apesar disso abandonou o género cómico, tendo, para além de variadas composições profanas e religiosas (sobretudo missas, uma das quais é notável por privilegiar os instrumentos de sopro) composto outras óperas de sucesso, como Perseo ou Penelope. Foi mestre dos príncipes e, no Seminário, professor dos maiores músicos que haveriam de brilhar ainda nesse século. Morreu em 1798.

Leal Moreira, um dos discípulos de João de Sousa Carvalho no Seminário Patriarcal de Lisboa, nasceu em Abrantes em 1758. Foi, em Portugal, o mais respeitado chefe de orquestra da sua geração, além de organista e mestre das capelas da Patriarcal e Real. Também influenciado pela escola italiana, não deixou de pôr uma certa marca portuguesa nas óperas A Vingança da Cigana e A Saloia Enamorada, com libretos de Caldas Barbosa, poeta brasileiro. Autor de composições religiosas, foi no entanto no campo da ópera que mais se destacou, tanto pela quantidade como pela qualidade, tendo mesmo uma delas, Il Desertore Francese, constituído assinalável êxito em Turim, onde se estreou no Carnaval de 1800, e em Milão, onde foi representada no Scala, em 1801. António Leal Moreira foi o primeiro director do Teatro de S. Carlos, cargo em que permaneceu sete anos, desde a sua inauguração até 1800. Viria a falecer em 1819.

João José Baldi, que nasceu em 1770 e morreu em 1816, estudou música no seminário Patriarcal e teve vários mestres de renome, o principal dos quais foi João de Sousa Carvalho. Foi mestre na sé da Guarda e na de Faro, além da Patriarcal, do Seminário de Lisboa e da Capela Real da Bemposta. Nitidamente influenciado pela ópera italiana, compôs com muita graciosidade e simplicidade, o que lhe valeu ter sido facilmente aceite por um vasto público. Esse seu gosto fez mesmo com que compusesse obras para serem cantadas nas igrejas que constituíam peças quase cómicas, mas que, talvez por isso, tinham a mesma aceitação popular dos espectáculos verdadeiramente profanos.
(Amanhã: "Parte IV - Marcos Portugal: ambiente e obra")

3 comentários:

Anónimo disse...

obrigado pela introdução,pelas origens e pelo triunfo.aula excelente!

Anónimo disse...

excelente lição! parabéns.

Anónimo disse...

mif...ana
Obrigado pela paciência de terem lido. Tenho isto aqui no computador há uns anos, inédito. Escrevi-o para alguém que precisava de saber umas coisas sobre o assunto, e não encontrava bibliografia no mercado. Catando aqui e acolá, pescando de tarrafa numa série de livros, lá desenrasquei o essencial. Ao contrário do que um comentador, que veio cá espreitar, disse no Aspirina B, blog de que me cansei, não se trata de uma pré-publicação, mas de uma publicação provavelmente única.
Um par de abraços.