Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


sábado, 5 de abril de 2008

Morrer de humor



O tempo voa, dizem. Parece que foi ontem que Herman José fazia a actualidade nacional, com o grande momento da proibição de exibição, pela RTP, de um sketch humorístico considerado ofensivo à luz da susceptibilidade da Igreja Católica. Se na altura já era algo descabido um tal pudor dogmático, hoje então só com muita dificuldade se encontra uma ponta de sentido naquele conceito de ofensa. Daí para cá mudou muita coisa, claro, passe a redundância. Mas a propósito do humor eu vejo mudanças delicadas, nesse fino sentir religioso de um mundo cada vez mais afastado, entre si, da essência do divino enquanto apostolado de fé, esperança e caridade que fosse desígnio do homem na sua passagem terrena. Enquanto vivência de Amor, de um amor fraternal que aproximasse os povos ao invés de os colocar uns contra os outros em cruzadas impossíveis e sangrentas. Quase nada disto ilustra o Divino, na práctica dos dias modernos da fé. Dele sobram apenas o bafo de uma vigilância carrancuda e austera, o tique da proibição como opção primeira, o escândalo do luzir do oiro e o tilintar das correntes que prendem os mastins de guarda aos portões da santidade. Com tais fiscais do respeito à letra, de olho na expressão do sentir de cada um e dentada pronta, não há de facto lugar para o humor. De resto, «todas as religiões são cruzadas contra o sentido de humor», dizia Savater, cito de cor. Só posso concordar.

Por humor se mata, hoje em dia. O episódio das caricaturas de Maomé ilustra na perfeição até onde pode ir uma suposta defesa do Divino, neste caso o Profeta. Como podia ser Jesus Cristo noutras circunstâncias, atrevo-me a especular. Brincar com o sagrado é cada vez mais uma roleta de consequências difíceis de prever, um atrevimento anunciado que pode levar a uma escalada de disparate bem mais caricata que a piada que lhe deu origem. Em última análise, pode-se mesmo morrer de humor, o que é triste e revelador do absurdo a que se pode chegar em matéria de preconceito religioso. Mas, aparentemente, continua a ser uma traquinice apetecível para os humoristas, como se pode comprovar pelo visionamento desta boy's/priest's/band que nasceu (acredito piamente) fadada para o sucesso. São 'Padres de Espírito', vê-se logo, de resto. Ora vejam, por favor. E depois digam-me, sinceramente, se vale a pena matar ou morrer por delito deste calibre.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não acho este sketch ofensivo pelo mesmo motivo que não o acho com carisma humoristico e, talvez por isso, nem sequer me fez sorrir. Que pena estes autores se sujeitarem a um papel destes. Acho que mereciam um guião bem melhor. Que pena a caixinha mágica pagar e produzir este humor tão fácil. Que saudades tenho do Raul Solnado...

samuel disse...

A existência de "humor fácil", assim como a "violência gratuita", são mitos.
Estas séries de humor, sejam boas ou más, britânicas ou de Curral das Moinas, dão imenso trabalho durante muitas horas, aos participantes. Igualmente, as séries de TV ou filmes "de violência" ficam caríssimos...