Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quinta-feira, 24 de abril de 2008

Dois sonetos à maneira de Natália Correia

Eu cá sou como os malucos, conto tudo a toda a gente. Pois estava eu para aqui danadinho da vida por não ter com quem embirrar quando dei em escrever ao Daniel de Sá para arejar a neura: «De Sá, diz-me: é por causa daquele dinheirito que me emprestaste e eu não te paguei? Ou é porque as miúdas dizem que eu sou mais giro (muito mais, incomparavelmente) que tu? Por que raio estás tu chateado comigo, ó da Maia, tão zangado que nem um olazito te mereço?». Respondeu-me na hora, aposto que sem pestanejar: «Ó raio de um homem, claro que estou chateadíssimo contigo, com o teu cão, com as pulgas do teu cão, com os 4-1 do União de Leiria, com o tempo que anteontem foi frio depois de ter sido frígido, e ontem foi quente e já hoje está frio outra vez, e com o Fernando Cristóvão que nos quer lixar a língua, e com tudo o que quiseres.» Mandei-lhe 'um abraço' e ele em troca 'dois sonetos à maneira de Natália Correia'. Achei a coisa justa e despedi-me. Acho que ele também me despediu. Arre porra, como é linda a amizade!


Em baixo: "Dois sonetos à maneira de Natália Correia"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
AO AMOR


A ilha me perdeu, sou de nenhuma.
Saudade-amor de mim, pedra que móis
Meu trigo que ceifei por outros sóis
Onde o suor não se evapora em bruma.

Sou valquíria que escolhe os seus heróis.
Minha paixão sou eu. Não me consuma
Outra paixão, amor. Bebo uma a uma
As gotas do veneno com que dóis.

Se as ilhas fossem gente, eu era o Pico,
De coração só feito de mistérios
E os longes das paisagens onde fico.

Das arribas do ser, a vida tomba
E os amores do Amor a morte fere-os.
Não libertem por mim nenhuma pomba.

AUTO-RETRATO ALEXANDRINO

Eu nunca fui na vida, eu nunca fui menina:
Impura sim. Eu sou a imaculada impura.
Não vesti tafetás nem chitas de candura
Nem quis vencer jamais esta invencível sina.

Foi sã minha poesia, e foi também perjura
Como uma flor-de-lis entre ascos de latrina.
Cantei ainda cedo a loa vespertina.
Se há Deus, vou-Lhe a caminho, e sinto-me segura.

Por ódio ou por amor, chamem-me louca ou bela.
Sinto a inveja e o ciúme em modos de homenagem:
Se tenho de aceitá-la, eu não me nego a ela.

Fui rainha de mim, de versos e de prosas,
E só a mim também honrei em vassalagem.
Cada espinho que fere é um sinal de rosas.


7 comentários:

Anónimo disse...

Lindo este soneto Ao Amor!

"O amor não é somente um lugar, também faz de nós um lugar. O amor é o lugar desconhecido que habitamos, que nos habita e para o qual e com o qual caminhamos."

Abraço-os, aos dois, c/ muito carinho.

Anónimo disse...

Daniel de Sá:

Não podia deixar de lhe expressar a minha admiração por este trabalho poético. Esta é a verdadeira Poesia, com maiúscula. Fiquei emocionada. Quando se nasce Poeta, é assim. Esta será uma Poesia de sempre e para sempre. O meu obrigada pela beleza, inspiração e verdade que soube imprimir aos poemas. Maravilhoso! E olhe que sou exigente...
Se me permite, um abraço.

Soledade Martinho Costa

Daniel de Sá disse...

Recebo os dois abraços com todo o carinho e alguma emoção. É sempre agradável ver que há alguém que aprecia o que fazemos. Deus vos pague.
Mas adianto uma curiosidade acerca destes sonetos. Houve alguns blogues que os transcreveram e disseram que eram da própria Natália! Em dois deles até inventaram o nome do livro em que esles estariam, se bem que cada um inventou o seu, que, num dos casos, era "O Livro do Amor". Do outro já não me lembro.
Um par de abraços.
Daniel

Anónimo disse...

Gostei muito! do segundo soneto.
Acho que todas as mulheres devem gostar muito, assim, eu só podia dizer isto que disse.
E pergunto-me, porque é que os homens gostarão, se gostarem, deste soneto?
Olá, Daniel! :)
lenor

Daniel de Sá disse...

Lenor
Porque muitos gostam de que as mulheres sejam como elas gostam de ser.

Anónimo disse...

Obrigada, Daniel. Deve ser isso mesmo, assim , simples e eficaz :))
lenor

Sabina disse...

Os poemas do Daniel estão excelentes e a introdução do Rui está à altura.
Deveriam ter mais zangas dessas para podermos ler aqui mais trabalhos destes.