Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Rehab Amy, the wine house.

Amy Winehouse foi a grande vencedora da noite dos Grammys, ontem em Los Angeles. Cinco, nada menos. O pior que lhe podia acontecer, digo eu. Amy tinha recebido seis indicações para os Grammy 2008, incluindo as quatro principais (Revelação do Ano, Álbum do Ano, Gravação do Ano e Música do Ano). Ganhou cinco estatuetas, saboreadas pela televisão já que não pôde recebê-las pessoalmente. O governo dos EUA negou visto à artista para cantar no Staples Center, sede da 50ª edição dos Grammys, atendendo aos escândalos habituais na rapariga. A pedido dos organizadores, Winehouse só poderia cantar numa performance televisiva em directo de Londres, onde mora e cumpre seus tratamentos anti-drogas. E assim foi.

Foi assim que uma perturbada garota de 24 anos acabou ontem premiada com cinco dos mais importantes galardões do show business mundial, numa noite que qualquer deslumbrado acha o sonho de uma vida. Mas que eu receio ter sido a pior coisa que poderia ter ocorrido à pessoa que veste o boneco de Amy, agora levada em ombros a ocupar uma residência no condomínio dos deuses, mas sem a mais que improvável lucidez que lhe diga ao ouvido (muitas vezes por hora, minuto, segundo) que se trata apenas de uma cedência de espaço, um aluguer caro, não uma compra definitiva de lugar vitalício. Que é preciso batalhar pelo lugar, dar mais e melhor de si a cada momento. Ou será o mesmo público que hoje lhe paga a renda a despejá-a na rua de todas as amarguras: o beco do arrependimento.

Aos ouvidos de Amy sopram agora as mesmas vozes que sempre se encontram ao redor de um vencedor, os que dizem só o que sabem ser do agrado de quem ouve, sem risco de contraditório. Take it for granted, dir-lhe-ão. E ela vai gostar de ouvir, pelo que if they want to send me for rehab I'll say no, no, no. Em volta de uma Amy já em desequilíbrio estão agora os pesos mortos, rapaziada do elogio, pessoal da lingua no coiso, mestres da graxa e sugadores de luxo em qualquer palhinha que se ponha a jeito. O peso de todos, num equilíbrio já de si precário, fará cair o chão e desabar o tecto do sucesso. Depois pôr-se-ão a milhas. E só na solidão do abandono das sanguessugas e dos cínicos, dos lacaios e dos bobos, dos falsos e dos merdas, é que Amy Winehouse vai encontrar um dia o seu caminho da glória. Ou não, quem sabe fica pelo caminho, como tantos outros fenómenos que não se souberam gerir enquanto tal. Que só deram pelo valor do seu talento quando já toda a gente tinha secado as lágrimas por este se ter suicidado. Será uma pena se assim for também com esta garota, pouco mais, brinquedo nas mãos das bruxas que batem palmas ao petisco da rentável novidade. E que querem tanto rehab como ela, alucinada. Amy Winehouse sem drogas? Podia até ser engraçado, mas não vendia. Amy é mais que a pessoa que canta, é o boneco escandaloso que pisca o olho à moda, que é quem paga as contas. Do encanto do espectáculo faz parte a sua própria degradação, que o público paga para ver como quem vai ao circo ver o leão comer o prior, neste moderno freak-show global.

Amy Winehouse é um fenómeno da pop, uma genuína alma de artista perdida numa embalagem de sofrimento e desespero. Uma voz de timbre único, uma sensibilidade selvagem e um ritmo original, próprio, inventado, criado, seu de berço. Uma eleita, inocente dessa culpa. O que ela tem que a faz genial ela não domina, não compreende, não vê e não valoriza. Para ela, tal como está, a felicidade ainda mora no nevoeiro e o amanhã não existe. Aos 24 anos, Amy segue em rota de colisão com o seu próprio futuro, embalada na asneira por não conseguir chegar com o pé ao travão da maturidade. A noite de ontem, ao carregá-la com mais cinco pesos de estrelato, só chamou mais gente para ajudar a empurrar a tragédia. Só deu velocidade ao inevitável, suspeito. Porque o espectáculo, esse, tem que continuar sempre, custe o que custar. E custe quem custar no caminho.

10 comentários:

Anónimo disse...

Pois, a máquina da fama é implacável!
Não há sangue que sacie os vampiros!

Anónimo disse...

P.S.: ...o que não desculpabiliza, totalmente, as "vítimas".
Se são precoces para umas coisas...

Anónimo disse...

Excelente texto, Rui. Concordo totalmente contigo mas nunca (mas mesmo nunca)conseguiria escrever um texto tão lúcido.

Deixo aqui para registo a parte mais negra, mórbida e cruel que já gira à volta dela ( pelo menos a visível)

http://www.whenwillamywinehousedie.com/

Anónimo disse...

Este texto lembrou-me que existe alguém que levou emprestadado o meu CD da Amy.

Dão-se alvíssaras a quem o devolver.

Rui Vasco Neto disse...

mifá,
Pois.

mifá,
Pois?

saci,
segui o link e desconhecia, é imptressionante. E vem sublinhar o que escrevi no post, infelizmente.

azarónimo,
temos pena, chatice, caraças, bolas, paciência. sniff.

samuel disse...

Altíssimo texto!
Alguém, meio a brincar, meio a sério, terá dito que a "vida artística" só de vez em quando é artística e raramente é vida.
Lúcido nesta história, embora talvez tarde demais, é o pai, que constantemente apela para que as pessoas deixem de comprar os discos e assistir aos concertos dela. Não deve ter ficado muito feliz.

Anónimo disse...

Os encómios estão dados, e bem merecidos, por quem aqui chegou antes de mim.
Será que à rapariga vai acontecer nas cantigas o mesmo que sucede a muitos escritores que, depois de ganharem um prémio muito importante, nunca mais escrevem nada de jeito?

Anónimo disse...

pois!!...
mas não deixa de ser um belíssimo texto.
é-o sempre.
abreijos
Maria ( a açoriana)

Rui Vasco Neto disse...

sam,
onde é que já viste isto? quantas vezes?

daniel,
exige-se estofo, mais que alma, a quem chega ao sucesso.

mariónima,
gadinho.

Afrika disse...

Ola, cheguei ate aqui a custas de um outro blogue (mas isso não interessa agora nada)
Reforço o que já foi dito em relação ao teu texto sobre a Amy... Muito bom mesmo!
Lembro-me da primeira vez que ouvi uma musica cantada por ela, do primeiro álbum dela que comprei... que é possível que alguém chegue ao ponto que ela chegou?! Como és possível que alguém seja premiado (5 prémios!)estando ela na situação em que esta?! Estara a nossa sociedade a dar valor aos comportamentos desviantes?
Cada vez mais tenho receio do que a nossa geração esta a preparar pra a geração futura!