Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Depois do portão da casa

Suspeitei logo de provocação rasteira aqui: «Um poeta não pode abrir os braços em grandes abraços, não vá uma seta de remorsos ferir-lhe ainda mais o coração», diz-me Daniel de Sá, cutucando a onça. Mas a certeza da intenção confirmei-a logo a seguir. «O poeta não pode dar grandes passadas, não vá uma seta de saudade obrigá-lo a parar sangrando por tudo o que foi; pior ainda: por tudo o que não aproveitou ter sido», atira certeiro. Termina dizendo, para disfarçar, que isto é um «poema, ou lá o que seja, escrito depois de ler um do poeta brasileiro Lindolf Bell, intitulado “Do portão da casa”». E despede-se com um abraço, calculem. Humpff.


Em baixo: "Depois do portão da casa"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá


O poeta saiu de casa,

passou o portão.

Já não está na casa:

leva-a como escudo,

armadura armada de memórias.

Sonha que teve uma casa

onde havia pai e mãe,

que são outro modo de dizer casa.

Mas nada nos diz da casa.

Talvez cale por temor

de partir o sonho em dois:

a casa que ele teve,

a casa que já não o tem.

Melhor não falar dela,

bom é esquecer o que foi bom

para que haja um motivo menos

a dar razão à saudade.

Os telhados de vidro da casa

são os pontos fracos da armadura.

O poeta não pode abrir os braços

em grandes abraços,

não vá uma seta de remorsos

ferir-lhe ainda mais o coração.

O poeta não pode dar grandes passadas,

não vá uma seta de saudade

obrigá-lo a parar sangrando

por tudo o que foi; pior ainda:

por tudo o que não aproveitou ter sido.

É esta a casa que leva consigo,

como se fosse possível vivê-la,

como se fosse possível ser vivido por ela.

Do portão desta casa o poeta nunca passou.

Não o abriu, para não ter de o fechar,

para não ter de fechar-se

do lado de fora da casa,

do lado de fora da vida.

Quando o poeta fecha o portão da casa,

não pode levá-la consigo,

não pode estar na casa.

E a casa faz falta

mesmo quando já não existe.

Mesmo quando os seus telhados de vidro

são frágeis como a saudade,

inúteis como o remorso.


7 comentários:

Anónimo disse...

Well, está bem. Para ser poeta têm que se fazer certos sacrifícios e os apropriados para o ser, senão não resulta. Mas pronto, ninguém é poeta a tempo inteiro, senão nem arranjava matéria prima para depois trabalhar.
lenor

Anónimo disse...

lenor
Nem sempre se pode agradar a todos. Sobretudo quando o produto é de má qualiade. Peço desculpa pelos dois minutos da sua vida que terei estragado.

Sabina disse...

Daniel

Pois eu agradeço-lhe estes dois minutos (um pouco mais porque demorei tempo a saborear)

Bjos
Saci

Anónimo disse...

Saci
Sinceramente, basta-me uma só leitora (ou leitor) que goste do que eu escrevo para justificar que o tenha feito.
Beijos recebidos, com agrado. Vai um punhado deles.
Daniel

Anónimo disse...

Daniel,
Referia-me com "sacrifícios", à intimidade do poeta, às suas vivências interiores que expõe não as expondo, como se passasse o portão da casa sem o transpor. Para um poema maluco, um comentário igual. Mas chamei-lhe poema, portanto tem honras de tal, dadas, pelo menos, por mim!
lenor

Anónimo disse...

Está bem, Lenor (é mesmo Lenor?), eu é que não percebi. Mas a culpa não foi sua. No entanto, estava no seu pleno direito de não gostar, que foi o que me pareceu. Melhor assim.

Anónimo disse...

Leonor, lenor de nick.
lenor