O conto de Natal era a história de uma criança que escrevera um pedido ao Menino Jesus, e terminava assim: “Não vou pôr na chaminé nem sapato nem meia. Só um papel em branco, para que deixes lá uma palavra para eu usar como quiser, a palavra «de». E assim eu posso escrever que Tu és o Menino Jesus e eu sou um menino de Jesus.” Era um hábito antigo de Félix, poema, crónica ou conto, presença para si obrigatória na edição especial. Mas, nesse ano, as coisas haviam mudado. O director disse-lhe que não haveria edição especial. Nada de meninas pobres sem bonecas, nem de meninos a sonhar com uma bola de futebol, ou de poemas a rimar “luz” com “Jesus” sem uma gota de talento. O jornal ficava muito mais caro e a publicidade não compensava.
Tentou demovê-lo, masem vão. Era o único jornal da cidade, não perderia assinantes por causa disso. E quase ninguém lia aquela ladainha de lamúrias sobre a condição dos pobres, ou os louvores ao Menino, a Sua Mãe e a São José. Perguntou se era palavra definitiva. “ Está decidido.” Félix desejou boas festas, e desligou o telefone. Nesse momento, o burrinho de barro escorregou das mãos da filha que se esticara para o pôr dentro da gruta, e partiu-se. Ela chorou. A mãe disse que no dia seguinte comprariam outro.
Na loja, a vendedora estranhou. “O seu também se partiu?” Sim, partira-se, mas que é que isso tinha de especial? “Já vendi umas duas dúzias deles hoje, e todos porque se partiram.” Não havia nada para admirar nesse facto, porque se faziam centenas de presépios na cidade, e sempre se quebrava uma ou outra figura, não seria verdade? “O que eu admiro é que ninguém apareceu a pedir um boi, um anjo, um São José, uma Nossa Senhora, um mago... Só burrinhos. Tenho de mandar buscar mais.” Ao chegarem a casa, a menina escorregou na escada e fez-se em cacos também aquele... “Não chores. Voltamos já à loja, meu amor.” Voltaram. A vendedora perguntou: “Vêm comprar outro?” Era. “Já vendi os últimos.” Mãe e filha estranharam agora ainda mais a coincidência. Talvez aqueles burrinhos fossem de barro muito frágil, deveria ser defeito de fabrico. Não era, garantia a vendedora. “E eles só ontem é que começaram a partir-se. Já veio gente aqui comprar um pela segunda e pela terceira vez. Amanhã teremos mais.”
Quando chegou a casa e soube do sucedido, Félix nem podia acreditar. Foi a casa de um vizinho, e perguntou se ele já armara o presépio. Não armara. “Se não fosse muita maçada, poderias mostrar-me o burro?” O vizinho ficou admirado com o pedido, mas foi buscar a caixa onde estavam guardados os bonecos. Ao entrar com ela na sala, um dos filhos apareceu correndo, a fugir do irmão, bateu-lhe no braço e a caixa caiu. Ouviu-se o ruído das figuras a fazerem-seem cacos. Os pequenos pararam a brincadeira e, aflitos, abriram a caixa para a inspeccionar. Tiraram os magos, intactos. Depois Nossa Senhora, São José e o Menino, sem uma beliscadura. Ao anjo não faltava nem uma ponta das asas. Todos os bonecos estavam inteiros, só o burrinho se esfanicara.
Ficou com poucas dúvidas. O burrinho do presépio arranjara aquela maneira de protestar contra a falta da edição especial. Foi ter com o director e contou-lhe o caso. Ele riu-se pensando tratar-se de brincadeira. Mas, perante a insistência e a convicção do amigo, resolveu mandar comprar um burrinho para mostrar como não o deixaria cair nem o boneco se partiria. Quando o tinha na mão, uma bola entrou pela janela e acertou em cheio no burrinho. “Coincidência”, disse. Foi ele mesmo buscar outro. Ouviu a vendedora falar dos muitos que se tinham partido. “Este não se partirá”. Pagou, pegou no boneco e, inesperadamente, espirrou, deixando cair mais aquele. Comprou mais um. Ia a sair a porta quando tropeçou no tapete, e, dessa vez, caíram ambos, ele e o burrinho. “Manda o conto. A edição especial há-de ser feita.”
E foi assim que o burrinho do presépio deu mais uma lição aos homens.
Tentou demovê-lo, mas
Na loja, a vendedora estranhou. “O seu também se partiu?” Sim, partira-se, mas que é que isso tinha de especial? “Já vendi umas duas dúzias deles hoje, e todos porque se partiram.” Não havia nada para admirar nesse facto, porque se faziam centenas de presépios na cidade, e sempre se quebrava uma ou outra figura, não seria verdade? “O que eu admiro é que ninguém apareceu a pedir um boi, um anjo, um São José, uma Nossa Senhora, um mago... Só burrinhos. Tenho de mandar buscar mais.” Ao chegarem a casa, a menina escorregou na escada e fez-se em cacos também aquele... “Não chores. Voltamos já à loja, meu amor.” Voltaram. A vendedora perguntou: “Vêm comprar outro?” Era. “Já vendi os últimos.” Mãe e filha estranharam agora ainda mais a coincidência. Talvez aqueles burrinhos fossem de barro muito frágil, deveria ser defeito de fabrico. Não era, garantia a vendedora. “E eles só ontem é que começaram a partir-se. Já veio gente aqui comprar um pela segunda e pela terceira vez. Amanhã teremos mais.”
Quando chegou a casa e soube do sucedido, Félix nem podia acreditar. Foi a casa de um vizinho, e perguntou se ele já armara o presépio. Não armara. “Se não fosse muita maçada, poderias mostrar-me o burro?” O vizinho ficou admirado com o pedido, mas foi buscar a caixa onde estavam guardados os bonecos. Ao entrar com ela na sala, um dos filhos apareceu correndo, a fugir do irmão, bateu-lhe no braço e a caixa caiu. Ouviu-se o ruído das figuras a fazerem-se
Ficou com poucas dúvidas. O burrinho do presépio arranjara aquela maneira de protestar contra a falta da edição especial. Foi ter com o director e contou-lhe o caso. Ele riu-se pensando tratar-se de brincadeira. Mas, perante a insistência e a convicção do amigo, resolveu mandar comprar um burrinho para mostrar como não o deixaria cair nem o boneco se partiria. Quando o tinha na mão, uma bola entrou pela janela e acertou em cheio no burrinho. “Coincidência”, disse. Foi ele mesmo buscar outro. Ouviu a vendedora falar dos muitos que se tinham partido. “Este não se partirá”. Pagou, pegou no boneco e, inesperadamente, espirrou, deixando cair mais aquele. Comprou mais um. Ia a sair a porta quando tropeçou no tapete, e, dessa vez, caíram ambos, ele e o burrinho. “Manda o conto. A edição especial há-de ser feita.”
E foi assim que o burrinho do presépio deu mais uma lição aos homens.
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