O meu amigo Daniel de Sá escreve no Aspirina B, como é sabido. É ouro da casa, ela própria de luxo. Mas, de vez em quando, Daniel publica também por aqui colaboração generosa e que nos encanta, a mim e aos passantes com ou sem cartão de residência. Muitos desses são açorianos, tal como eu e tal como o Daniel. Pois foi a pensar em todos eles - em todos nós, açorianos - que esta noite fui ao galinheiro aspirínico e pilhei esta galinha gorda para a janta cá da malta. Estava por lá à vista, uma entre várias; olhei para um lado, olhei para o outro, não vi ninguém: zzzut. Ora sirvam-se, se fazem favor, que este é um fantástico documento da oralidade da nossa terra. Raro, precioso. Lembrem-me de agradecer ao Daniel, quando o vir.
Em baixo: "Duas garrafas de Macieira"
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá
Olhe qu’ê gosto munto do João Cravalho, aquilo nã era partida qu’ele me fezesse. A gente só pode levar duas garrafas de bebida, dizem qu’a lei nã permete nem sequer essas duas, mas eles fechim os olhos s’a gente nã leva más que duas. Quer-se dezê que eu levê aquelas duas e nã podia levar más ninua. Uma era pra ofrecer ó mê doutor, um belo home, que até fala uma nisquinha de pertuguês, e tá sempre numa ipequeia comigo, quer qu’ê largue a bebida, mas, mê rico amigo, um home bebe desde o breço, nã há modos de largar, nã le parece? Isto nã é mintira ninua, era cma todos os outros pitchenos do mê tempo, mal davam um grito as mãs pansavam qu’era dôs de barriga, ala dar-les licô de esprite de canela, a gente ficava era bêbedos, coutadinhos, ó dispous, já más maorzinhos, era sopas de cavalo cansado, sabe isto o que é, o sê pai tamam dava às mulas uma garrafa de vim e um pã trigue, antes da viage da cedade prà Maia, sete léguas aluídas por aí adiante, entanse pra subir a Croa da Mata, mas más principalmente o Coucinho do Porto Formoso, aqui os carroceros tinham de metê a giga nos varales da carroça pra dar uma ajuda às bestas. Nos Calços, a camineta, qu’era a cravão, nã subia, os passageros tinham de descer e dar uma ajuda a impurrar, o malero ponhava uma pedra mal ela subia uma becadinho, os homes tomavam folgo e ala outro impurrãzinho. E cando era pra sair aqui da Maia, o malero ia aí plas quatro da manhã acender a caldera, despous a camineta tomava balanço pra pegar pla rua da igreja abaxo, se não pegava tava lá em baxo uma junta de bous pra a levar pra riba até à igreja, e lá ia ela por ali abaxo até pegar. E no Coucinho do Porto tava sempre outra junta.
Pous, fu ê munto prezado ofrecer uma garrafinha ó mê doutor, nem faz ideia cm’aquele home tratou a minha mulher, qu’ela morrê fou porque teve de sê, era uma santa, o que penou comigo só Dês sabe e ê tamam. É por isso que agora que tou viúve e na ritaia venho cá más vezes, mas esses coriscos pregam-me cada partida qu’ê nunca m’alembro de ter feto igual a outros, e inda menos a eles, mês ricos amigos. Mas esta fou ideia do João Cravalho, que se ri cm’o demoino cando le conté, e ê tolo inda le fu contar o que m’acontecê. Pous segue-se que cando ê incontré o doutô, despous de le dar a garrafinha, era de Macieira, tava à espera qu’ele me fezesse um elogio, qu’aquilo vendo era mesmo Macieira, eles fezeram a cousa munto bem feta, era tal qual. Um elogio, isso é qu’era bum! Cal-te-cá elogio! Sabe o qu’ele me disse? Os coriscos tinham botado era chá nas garrafas, qu’ê despous provê a outra, que tinha na ideia ofrecê-la a outra pessoa amiga. O doutor ri-se e disse-me, ele fala uma nisquinha de pertuguês, já le disse, “Ó senhor Franco, a aguardente na sua terra é munto fraquinha.”
Pous, fu ê munto prezado ofrecer uma garrafinha ó mê doutor, nem faz ideia cm’aquele home tratou a minha mulher, qu’ela morrê fou porque teve de sê, era uma santa, o que penou comigo só Dês sabe e ê tamam. É por isso que agora que tou viúve e na ritaia venho cá más vezes, mas esses coriscos pregam-me cada partida qu’ê nunca m’alembro de ter feto igual a outros, e inda menos a eles, mês ricos amigos. Mas esta fou ideia do João Cravalho, que se ri cm’o demoino cando le conté, e ê tolo inda le fu contar o que m’acontecê. Pous segue-se que cando ê incontré o doutô, despous de le dar a garrafinha, era de Macieira, tava à espera qu’ele me fezesse um elogio, qu’aquilo vendo era mesmo Macieira, eles fezeram a cousa munto bem feta, era tal qual. Um elogio, isso é qu’era bum! Cal-te-cá elogio! Sabe o qu’ele me disse? Os coriscos tinham botado era chá nas garrafas, qu’ê despous provê a outra, que tinha na ideia ofrecê-la a outra pessoa amiga. O doutor ri-se e disse-me, ele fala uma nisquinha de pertuguês, já le disse, “Ó senhor Franco, a aguardente na sua terra é munto fraquinha.”
4 comentários:
Ê tamam quer agradecê ó sô Danier, e ô sô Ru, más ainda ó sô Franco pla outra garrofa de maciera quê mamê más mê compodre.
Joam Cravalhe
Eu li, gostei. Estas coisas acontecem de verdade e há quem as conte desta maneira ao vivo e a cores e a rir pelo meio. E no fim!
lenor
a.g.c.
Por acaso o João Carvalho já morreu. Era bom rapaz, mas bebeu mais do que o fígado aguentou. Tal como o Franco. Ambos deveriam ter-se dado mais ao chá do que à Macieira.
Leonor, como já percebeste, a história das garrafas (como tudo o mais) é verdadeira.
Daniel, é um facto que o chá certamente, neste caso, lhes prolongaria o tempo de viver, mas foi sem dúvida a macieira lhes deu a graça de um registo que nem todos se orgulham de ter.
Rui, tás a ler? Como já cá tens muitos registos, segue lá os
conselhos do velho amigo Daniel. Bebe mais cházinho, mas não daquele que vem da Escócia, só o da gorreana, tá? Para não ficares com mau fígado.
Abraço
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