Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


domingo, 30 de março de 2008

A vocação do PGR

Estou que nem posso. De rastos mas de pé, no rescaldo de uma semana dominada pelo voyeurismo de um país que a passou de cócoras, em frente ao buraquinho aberto (para o espreitar da populaça) por um tal Rafael, colega da Patrícia, alunos da Adozinda. Doem-me os joelhos mas valeu a pena, caramba. Foi demais. A Patrícia e a Adozinda pegaram-se na aula, uma empurrou a outra, a outra puxou a uma e o Rafael gravou tudo no telemóvel dele e mostrou à malta toda no YouTube. E aí foi ver Portugal consolar-se com esta cusquice inesperada, pitéu da má-língua, servida em doses maciças de ilegalidade que ninguém reparou, ninguém proíbiu, ninguém sancionou (embora o Código Penal seja absolutamente claro no que toca à difusão de imagens captadas na privacidade dos envolvidos, está lá tudo, preto no branco...). Mas era tão suculento e oportuno aquele naco de escândalo, tão providencial a sua origem sem custos, um tão perfeito momentum, que cem televisões se jogaram áquele osso sem quaisquer pruridos de protecção e milhões de nós comeram até fartar, sendo que há quem ainda não esteja farto. E quem de direito, o país político e institucional, quem manda, quem pode, fez o que faria qualquer Pilatos na mesma circunstância: não deixou de condenar mas também não deixou de ver e rever. E assim foi condenando enquanto via e vendo enquanto condenava. As televisões mostraram, os jornais escreveram, os políticos falaram, os portugueses comentaram. E o assunto cresceu e multiplicou-se.

Entretanto ninguém foi mordido por um cão de raça perigosa. Em Anadia e Alijó ninguém morreu por falta de assistência. O processo Casa Pia vai andando, obrigado. O Pidá continua de cana. Valentim vai-se safando. Pinto da Costa não se tem casado, ultimamente. Da Madeira já não se fala em corrupção. A Maddie não aparece e os McCann tão cedo também não. E aquela coisa do Casino Lisboa já lá vai, que diabo, águas passadas não movem moinhos, está dado está dado, o Assis merece, quem dá e tira vai para o inferno, não se fala mais nisso. De maneira que já agora, havendo o video e tudo (e também para não se estar sempre a discutir o ensino, a educação, a escola, os alunos e os professores) alguém tinha que fazer alguma coisa para dar a ideia que alguém faz alguma coisa. E alguém fez. «O procurador-geral da República tem acompanhado de perto todas as situações de violência escolar que chegam ao seu conhecimento. No caso concreto, ocorrido no Carolina Michaëlis, falou já com o procurador-geral distrital do Porto, dr. Pinto Nogueira, e com a sr.ª directora do DIAP do Porto, dr.ª Hortênsia Calçada, que têm estado ao corrente dos factos e diligenciado no sentido de apurar responsabilidades». É Pinto Monteiro que surge, qual bombeiro que carrega a mangueira salvadora da chamuscada decência nacional, chegado ao intervalo para varrer tudo e todos e mudar o resultado do jogo. «O Ministério Público quer "apurar as responsabilidades" do polémico caso da Carolina Michaëlis, para saber até onde pode intervir, de forma a assegurar a reposição da autoridade pública e a tranquilidade na escola.», garante fonte da Procuradoria. É Portugal da autoridade no seu melhor, arreganhando o músculo aos problemas antes de sequer os tentar digerir e compreender, num absurdo que se repete a cada novo perigo, a cada nova crise.

Acontece que o famoso Estatuto do Aluno, que todos comentam mas poucos terão lido, prevê no seu Artigo 27.º as seguintes Medidas Disciplinares Sancionatórias: a) A repreensão; b) A repreensão registada; c) A suspensão da escola até cinco dias úteis; d) A suspensão da escola de 6 a 10 dias úteis; e) A expulsão da escola. Face à situação que todos vimos, será que uma destas medidas não assegura a intervenção suficiente e necessariamente proporcional ao ocorrido? Será assim tão essencial, ou mesmo desejável, a intervenção da Procuradoria Geral da República numa aula de Francês da Escola Carolina Michaelis? Será mesmo isto que queremos para as nossas escolas? E para a nossa Procuradoria, já agora? Vale a pena ler, a propósito, as palavras de Pedro Sales, publicadas no seu 'Zero de Conduta' e que eu não resisto a transcrever, porque perfeitas na ilustração do meu próprio sentir. Ora leiam.

O mesmo Procurador Geral da República que precisou de ler quatro edições de uma investigação efectuada pelo Expresso - com base em material de prova que estava há anos na posse do MP - para perceber que tinha que fazer qualquer coisa sobre o Casino de Lisboa, dedica agora meios e recursos para investigar aquilo que, sendo um lamentável caso de indisciplina e insolência, não deve deixar de ser equacionado à luz da relativa gravidade do incidente. Mas o coro de apoio ao anúncio feito por Pinto Monteiro não se fez esperar. Afinal a “turba” de “canalhas” tem que ser posta na ordem e os professores não têm meios para o fazer. A sério? Será que quem anda há uma semana a proferir afirmações destas, que passam por uma verdade incontestável e inquestionável, alguma vez perdeu dois segundos para ler o que é que diz o estatuto do aluno em vigor? (..) Advertência, Suspensão, ou expulsão com decorrente perda do ano lectivo. O que é que querem mais? Colocar uma míuda malcriada no pelourinho e, de permeio, fazer um retrato de toda uma geração a partir de um caso que, podendo não ser isolado, será sempre ultra-minoritário? Quer me parecer que há por aí muito boa gente que "anda nisto" apenas para provar que esta é que é mesmo a geração rasca.

São palavras sábias, estas, plenas de senso e serenidade. Recordam-me outras, do Presidente da República que começou este ano de 2008 com um apelo à «serenidade no sistema educativo»; ele que agora, depois do video, se diz «profundamente chocado» com a violência nas escolas e por isso chamou o PGR a Belém, segunda-feira próxima, para juntos dividirem preocupações. E Pinto Monteiro já disse que «os pequenos ilícitos geram os grandes ilícitos, como as drogas leves conduzem às drogas pesadas», prometendo mão firme nas escolas para o que classificou de «pequena criminalidade» com a mesma segurança e convicção que tem posto em todas as promessas anti-crime que faz habitualmente. Ora eu tenho cá para mim que este notório prazer de Pinto Monteiro em dizer coisas (com provas dadas da Visão ao SOL, da Sábado ao Expresso e com passagens frequentes pelo Correio da Manhã e 24Horas, entre outros) quando aliado à pontualidade que revela na promessa justiceira a cada nova escandaleira mostrada no Telejornal, diz do senhor Procurador o que melhor seria não dissesse. Duas coisas em particular, preocupantes, a meu ver.

Diz-nos que a sua agenda (e com ela a da Justiça nacional) é marcada nas redacções da comunicação social e revelada por antecipação na primeira página das notícias matinais, sendo posteriormente confirmada e comentada pelo próprio onde calha. O que não deixa de ser um sistema, convenhamos. Mas acima de tudo revela-nos a visão que este Procurador tem do cargo que ocupa, ao cumpri-lo assim atrelado a reboque de cada estalar de dedos da indignação popular, zizeguezagueando investigações em obediência ao caprichoso papão da opinião pública ou em prol de uma qualquer conveniência circunstancial, uma possibilidade deixada em aberto pelo dossier Casino Lisboa. Mais um caso de vocação justiceira selectiva que, tudo o indica, não passará disso mesmo, para suprema tranquilidade da fina-flor do gardanho, esse pessoal de particular brancura no colarinho. E para mal dos nossos pecados.

3 comentários:

samuel disse...

O circo está garantido. Agora basta ir intercalando os números com uma ou outra fatia de pão e o povão (algum...) continuará entretido.

Anónimo disse...

Quando não há inteligência e sageza para apreender e cumprir naturalmente as normas, está-se, implicitamente a reclamar a presença de uma autoridade externa e imposta.
É a esses "desiluminados" e insensatos que as democracias devem as suas derrocadas.
E o diabo que o jure se elas não são fria e maquiavelicamente orquestradas!

Anónimo disse...

Claro que acho que a resolução do processo decorrente do episódio do Carolina só competete à respectiva escola. É, até, uma questão de brio e de não demissão de autoridade a escola exigir ser ela a tomar as medidas necessárias. A menos que os órgãos deliberativos da escola vejam a sua acção contrariada e travada por instâncias superiores. E, ao que parece constar, aquela escola já teve um antecedente destes, nomeadamente quando a DREN impediu a aplicação de uma proposta de punição de uma aluna por esta ter espancado uma professora.
Aí, sim teria a escola legitimidade de exigir a intervenção de instâncias superiores não para resolverem a situação ( porque , insisto, isso seria desautorizá-la ) mas para exigir que lhe fossem reconhecidos os meios necessários para o fazer.

Se por um lado, estes casos não devem ser objecto do MP, até porque, para além dos motivos que acima expus, o MP já tem processos encravados de sobra e muitos deles incompreensível e obscenamente adiados, por outro, não deixa de ser interessante constatar que tudo isso acontece pouco depois de a ME ter contrariado e minimizado o receio do PGR relativamente à violência nas escolas.

Enfim, é caso para dizer, parafraseando, "não acredito em premonições mas que as há, há ".