Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


terça-feira, 13 de novembro de 2007

Greve na cidade do lixo

A recolha do lixo está em greve na cidade do dito. Os carros pararam, os homens baixaram os braços, as máquinas deixaram de engolir caixotes e contentores e toda a merda da sociedade que somos ficou espalhada no passeio da frente das nossas vidas. Aguardam-se os resultados das negociações salariais. Até lá sufoca-se com o cheiro e tomba-se com a visão dos podres desta gente como a gente que é toda a gente e a nossa gente. Corre-se a cidade que somos saltando de diferença em diferença, se apenas seguirmos o rasto daquilo que deitamos fora.

Vamos de vento em popa no bairro dos miseráveis, que já vem de trás o bafo local de vidas pequeninas e tristes. Vidas perigosas. Nos caixotes atulhados espreitam corpos de não nascidos e restos de pouco vivos, que nem toda a gente é bem vinda e a ambição não dá para mais. Há pacotes de felicidade em pó e barras de alegrias usadas, por entre mil embalagens de existências descartáveis. Fede-se. Aqui o sujo é mais sujo e o Fairy perdia por certo a batalha da gota única e suficiente. Na utopia de uma limpeza, nem um barril de magia líquida devolveria o brilho da decência soterrada e esquecida na miséria geral.

No bairro dos pobres o lixo é pouco e pobre. Amontoa-se em pilhas organizadas e arruma-se em sacos pretos e fechados com atilhos comprados nas lojas dos chineses. O que mais se vê são mantas coçadas pelo uso e restos de roupa puída no gasto de muita jorna. A comida aproveita-se, não se deita fora. Há é papel com fartura, muita 'Maria, muito 'Crime', muita 'TV7dias' e muito mas mesmo muito jornal 24Horas. São vidas de cartão, pelo que também há muito. Caixas de frigoríficos a prestações na Singer, caixas de aspiradores da última promoção Continente, leve agora e pague depois, caixas de papas, caixas de bolos e muita muita televisão. Aqui o Fairy já resolve, talvez. Deixa tudo pobre na mesma mas limpinho, legal e honrado.

O bairro da classe média sofre horrores com a greve do lixo, tá a ver? È imensa a porcaria que se acumula assim nos passeios, tá a ver, mais o cócó dos cãezinhos tadinhos são amorosos os bichinhos e os copos de plástico da festa de sexta feira em casa do Cajó que foi uma barulheira até ás tantas e alguém devia chamar a polícia da próxima vez e também acho que a reciclagem das matérias inorgânicas é muito importante na sociedade moderna e que o Dr. Pacheco Pereira até já disse que o ambiente é a maior preocupação do mundo dos nossos dias e eu cá tou imenso de acordo, não posso não posso tar mais, tá a ver?

Chego sujo, cansado, contaminado, esgotado, ao bairro dos ricos. À porta do privilégio não se vê pingo de gordura, God forbid. Aqui o algodão não engana. Aqui não há greve que emporcalhe os umbrais ou retire brilho ás maçanetas, nem merda não negociável à taxa do mercado em fiduciários discretos de rendimento garantido. Os relvados estão no tom correcto e no milímetro adequado, os passarinhos têm um trinar adequado e toda a forma de vida cresce na medida do correcto, sendo que o correcto é o mais adequado. Os sonhos são feitos de encomenda por design exclusivo de um Jójó local, logo não há embalagens de fábrica para fazer volume na calçada ou quiçá ferir o ladrilho do trottoir social. A tradição do clube transmite aos sócios o sábio ensinamento de, em dias de greve como o de hoje, recolher as crianças, trancar as portas e contactar por e-mail a central de segurança no sentido de serem tomadas providências com vista à contratação de mais pobres para a remoção atempada de tudo o que tenha cheiro e não seja Lancôme. O lixo habitual fica no lugar do costume e atrás dos muros.

O dia chega finalmente ao fim, na cidade do lixo. Os da noite saem para a noite enquanto os do sol se arrumam no descanso necessário para poder voltar amanhã. A jornada de greve teve uma adesão de cem por cento segundo os sindicatos do sector e trinta e sete por cento de acordo com os números da administração. O telejornal conta a história toda e mostra as imagens a cores. E a cidade do lixo vai para a cama suja mas informada.
Amanhã é outro dia.

RVN

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