A recolha do lixo está em greve na cidade do dito. Os carros pararam, os homens baixaram os braços, as máquinas deixaram de engolir caixotes e contentores e toda a merda da sociedade que somos ficou espalhada no passeio da frente das nossas vidas. Aguardam-se os resultados das negociações salariais. Até lá sufoca-se com o cheiro e tomba-se com a visão dos podres desta gente como a gente que é toda a gente e a nossa gente. Corre-se a cidade que somos saltando de diferença em diferença, se apenas seguirmos o rasto daquilo que deitamos fora.
Vamos de vento em popa no bairro dos miseráveis, que já vem de trás o bafo local de vidas pequeninas e tristes. Vidas perigosas. Nos caixotes atulhados espreitam corpos de não nascidos e restos de pouco vivos, que nem toda a gente é bem vinda e a ambição não dá para mais. Há pacotes de felicidade em pó e barras de alegrias usadas, por entre mil embalagens de existências descartáveis. Fede-se. Aqui o sujo é mais sujo e o Fairy perdia por certo a batalha da gota única e suficiente. Na utopia de uma limpeza, nem um barril de magia líquida devolveria o brilho da decência soterrada e esquecida na miséria geral.
Vamos de vento em popa no bairro dos miseráveis, que já vem de trás o bafo local de vidas pequeninas e tristes. Vidas perigosas. Nos caixotes atulhados espreitam corpos de não nascidos e restos de pouco vivos, que nem toda a gente é bem vinda e a ambição não dá para mais. Há pacotes de felicidade em pó e barras de alegrias usadas, por entre mil embalagens de existências descartáveis. Fede-se. Aqui o sujo é mais sujo e o Fairy perdia por certo a batalha da gota única e suficiente. Na utopia de uma limpeza, nem um barril de magia líquida devolveria o brilho da decência soterrada e esquecida na miséria geral.
No bairro dos pobres o lixo é pouco e pobre. Amontoa-se em pilhas organizadas e arruma-se em sacos pretos e fechados com atilhos comprados nas lojas dos chineses. O que mais se vê são mantas coçadas pelo uso e restos de roupa puída no gasto de muita jorna. A comida aproveita-se, não se deita fora. Há é papel com fartura, muita 'Maria, muito 'Crime', muita 'TV7dias' e muito mas mesmo muito jornal 24Horas. São vidas de cartão, pelo que também há muito. Caixas de frigoríficos a prestações na Singer, caixas de aspiradores da última promoção Continente, leve agora e pague depois, caixas de papas, caixas de bolos e muita muita televisão. Aqui o Fairy já resolve, talvez. Deixa tudo pobre na mesma mas limpinho, legal e honrado.
O bairro da classe média sofre horrores com a greve do lixo, tá a ver? È imensa a porcaria que se acumula assim nos passeios, tá a ver, mais o cócó dos cãezinhos tadinhos são amorosos os bichinhos e os copos de plástico da festa de sexta feira em casa do Cajó que foi uma barulheira até ás tantas e alguém devia chamar a polícia da próxima vez e também acho que a reciclagem das matérias inorgânicas é muito importante na sociedade moderna e que o Dr. Pacheco Pereira até já disse que o ambiente é a maior preocupação do mundo dos nossos dias e eu cá tou imenso de acordo, não posso não posso tar mais, tá a ver?
Chego sujo, cansado, contaminado, esgotado, ao bairro dos ricos. À porta do privilégio não se vê pingo de gordura, God forbid. Aqui o algodão não engana. Aqui não há greve que emporcalhe os umbrais ou retire brilho ás maçanetas, nem merda não negociável à taxa do mercado em fiduciários discretos de rendimento garantido. Os relvados estão no tom correcto e no milímetro adequado, os passarinhos têm um trinar adequado e toda a forma de vida cresce na medida do correcto, sendo que o correcto é o mais adequado. Os sonhos são feitos de encomenda por design exclusivo de um Jójó local, logo não há embalagens de fábrica para fazer volume na calçada ou quiçá ferir o ladrilho do trottoir social. A tradição do clube transmite aos sócios o sábio ensinamento de, em dias de greve como o de hoje, recolher as crianças, trancar as portas e contactar por e-mail a central de segurança no sentido de serem tomadas providências com vista à contratação de mais pobres para a remoção atempada de tudo o que tenha cheiro e não seja Lancôme. O lixo habitual fica no lugar do costume e atrás dos muros.
O dia chega finalmente ao fim, na cidade do lixo. Os da noite saem para a noite enquanto os do sol se arrumam no descanso necessário para poder voltar amanhã. A jornada de greve teve uma adesão de cem por cento segundo os sindicatos do sector e trinta e sete por cento de acordo com os números da administração. O telejornal conta a história toda e mostra as imagens a cores. E a cidade do lixo vai para a cama suja mas informada.
Amanhã é outro dia.
RVN
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