Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


terça-feira, 4 de março de 2008

Shit happens

Gostava de encontrar o tom certo para dizer aquilo que quero escrever neste momento. Um tom asséptico, factual e distante das emoções, o que nesta circunstância já seria difícil se o assunto fosse caracóis. Ou orquídeas. Ora o assunto aqui é jornalismo e isso complica tudo. É abominável o tom censório e o falso moralismo dos habituais donos da verdade, jamais o arriscaria em consciência. É caricato o tom arrependido do pecador reformado, e para mais fica-me curto nas mangas. Tem que ser um tom audível e cristalino na sua clareza, isso eu sei, algo entre o firme e o hirto. E nada de meios tons, toda a indignação por inteiro sem por isso comprometer a justeza da convicção. E sem semitonar, sempre afinado na alma. Tentemos, pois. Vamos aos factos.

O Diário de Notícias de ontem escolheu publicar duas fotos de Alexandra Neno, assassinada sexta-feira passada em Sacavém, mostrando dois momentos do fim da jovem, entre tentativas de reanimação e exame policial, camisa rasgada e seios expostos, um corpo como tantos outros de outros tantos flagrantes do crime urbano, aqui ou na América, Brasil ou Venezuela. A primeira foto faz a chamada de capa em formato reduzido, a segunda surge centrada nas páginas 2 e 3, já em formato ampliado. Na foto de capa, o jornal optou por acentuar um efeito de luz na imagem para semi-desfocar o peito nu de Alexandra, mas na foto interior o aproveitamento da morbidez tem intenção total e tão evidente como escusada: a foto da capa já era furo bastante. De resto teve dupla publicação, simultânea com o 24Horas, o que, mesmo sendo uma estratégia compreensível, não deixa de ser uma cumplicidade de mercado algo bizarra, convenhamos.

Gostava de encontrar o tom certo para dizer aquilo que estou a escrever neste momento. É certo que um corpo é apenas um corpo, como tantos outros de outros tantos flagrantes do crime urbano, aqui ou na América, Brasil ou Venezuela. Eu tenho consciência desse facto, conheço e defendo na essência os critérios que presidem à publicação diária dos milhares de imagens que ilustram (e ainda bem) a nossa informação. E não sou ninguém para leccionar ética, nem pretensões tenho a ser alguém assim. Só pergunto se este critério em particular não se esticou um nadita, se não terá passado da linha que marca o fim do furo jornalístico e acabado por enterrar o pé num buraco jornalístico em vez do furo, nas bordas do decoro. É que Portugal não é a América, o Brasil ou a Venezuela. E qualquer semelhança só pode ser uma lamentável coincidência, nunca encorajável com inopinadas latitudes editoriais vindas do grande jornal diário de referência. Digam-me, por favor, se vejo mal. Eu, sinceramente, não gostei. Achei gratuito e de mau gosto. Uma página escusada no DN, digo com pena. No tom certo, espero.

1 comentário:

RM disse...

Totalmente correcta esta análise.
Tristes momentos se vivem também na classe jornalística. Jornalismo sensacionalista, ou será contaminação por osmose dos CM e 24h?
A única coisa a acrescentar é que, na minha opinião, a distância entre Portugal e os países da América do Sul referidos já não ser assim tão notória. Com fortes probabilidades de se agravar.
Os índices de violência crescem assustadoramente, a perturbação social acompanha e a recessão económica ímpar desde a 2ª Guerra Mundial promove.
Enfim, preocupante, muito preocupante...