Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Finlândia: massacre na escola

Ora ouçam os senhores esta estória inventada. Na década de 80, em pleno Alentejo profundo, um rapaz de treze, catorze anos, era o bombo da festa da vila inteira nas piadas de todos os dias. A razão pulava à vista sempre que ele andava pelas ruas. O volume na frente das calças (por hábito sempre largas) escondia um enorme tumor nos testículos que fazia a vergonha do próprio e da pouca família que lhe restava, mãe e duas irmãs mais novas. Gente de misérias várias, é certo. Um rasto de alcoól pelo lado do pai morto, um rumor de promiscuidade do lado da mãe, as garotas ‘poucochinhas’ de cabeça, como era uso dizer no sítio. No café central da vila juntavam-se os mesmos todos os dias. E se o rapaz chegava ou passava as piadas eram sempre as mesmas também.

Era assim o doce dia a dia até que começaram os suicídios em série. Todos eles frequentadores do café, o que nem por isso chamou a atenção. Afinal toda a gente ali parava, mais ou menos. O primeiro caso passou quase sem notícia. Era um sujeito violento no que dizia e fazia, poucos lhe terão sentido a falta. Terá tomado veneno. Seguiram-se-lhe mais dois casos isolados até que a coisa se notou. O quarto suicídio num espaço de dois meses tinha sido duplo, marido e mulher. Todos com veneno. E todos com o mesmo veneno, extraído de um tubérculo comum no alto alentejo, uma raiz que todo o lavrador conhece e evita. A GNR investigou e apurou zero. Quando se completaram três meses sobre o primeiro caso surgiu a primeira suspeita. Aquele rapaz tímido e sempre calado, bombo de todas as festas da vila, tinha estado na casa de todos e de cada um dos mortos no exacto dia dos seus suicídios. Tinha até comido por lá, que o cair da noite era a hora mais solitária e triste no seu monte. E um dos filhos do casal morto por último tinha entendido fazer algumas investigações por conta própria e chegado ás suas próprias conclusões.

A série de estranhos suicídios parou com o desaparecimento do rapaz. Soube-se mais tarde que tinha vindo para a capital, tinha sido operado ao seu tumor e que trabalhava numa pastelaria qualquer da baixa. E, espanto dos espantos lá na vila, vivia em casa do tal filho do tal casal, de onde só saiu para casar muitos anos depois.Voltou à vila só uma vez, e muito recentemente. O café central lá estava, claro. Os bêbados é que eram outros. Mas horas mortas e portas fechadas, em conversa de pé de orelha com o dono do café, apenas com um freguês solitário esquecido num canto e bem bebidos os dois, abriram as almas um ao outro e a verdade jorrou por entre lágrimas de adultos. Toda a verdade, incluindo a da morte do pai do rapaz, já com veneno, depois de uma tremenda surra na mãe quando ele tinha oito anos.

Saí sem que me olhassem nos olhos e esqueci o assunto até hoje.

RVN

6 comentários:

Anónimo disse...

Finlandia ? Alentejo ?

Rui Vasco Neto disse...

rapaz? assassino?

Anónimo disse...

E o rapaz ou o agora adulto já foi a casa dos familiares das vítimas contar os seus traumas?
Afinal, a falar é que a gente se entende(onde é que eu já li isto?).

Rui Vasco Neto disse...

mifa,
'nunca deixar que a verdade estrague uma boa história' é uma máxima a reter.

Anónimo disse...

rvn,
ou nunca deixar que uma boa história estrague a verdade.
É outra perspectiva.

Rui Vasco Neto disse...

mifas,
o ideal é ter as duas coisas juntinhas num mesmo naco de prosa.
de acordo?