Falo de uma vida inteira, toda uma existência que passámos juntos. Cinquenta e dois anos, para ser exacto. Desde 1954, ano em que Baleizão ficava marcado a sangue no mapa de um Portugal a preto e branco. Lembro-me de tudo. Ou quase tudo, pelo menos, que a memória já me vai atraiçoando aqui e ali. Dizem que é natural, aos 77 anos. Mas recordo o essencial. A primeira imagem que guardei dela, o namoro, o encanto, a malandrice, a primeira vez.. Depois os filhos, tivemos quatro, todos aí bem criados para Deus ver. Lembro os dias felizes, as zangas, as festas, os funerais, os aniversários, aquele dia em que fomos passear mais aquele outro em que fomos jantar fora. Recordo as férias que passámos, as lágrimas que chorámos, a televisão que vimos, sempre juntos, o nascimento das crianças, as esperanças no rosto de cada um deles. As desilusões, a alegria e a tristeza, tudo e tudo e tudo, uma vida inteira, lado a lado, em casa e na rua, na mesa e na cama. Cinquenta e dois anos.
Já não sei quando é que me começou a irritar cada gesto seu, cada palavra dita, cada silêncio acusador. Terei ganho resistência ao seu cheiro e alergia ao toque, todos os dias e a todas as horas. Aquela sua ladainha dos fins de tarde dava nervos a um santo, garanto, e a sua energia nas manhãs deixava-me tonto. Discutíamos cada vez mais, é certo. Gritávamos um com o outro como se cada impropério tivesse o condão de suavizar a vida e perspectivar finalmente a morte, oferecendo-nos um lugar de paz nunca antes alcançada. Para isso fazíamos a nossa guerra. Como se cada insulto resolvesse tudo e acertasse as contas da diferença entre tudo aquilo que queríamos da vida e o pouco poucochinho que ela afinal nos deu. Chegou a um ponto tão insuportável que eu todos os dias pedia a Deus que Ele a levasse, ou a mim, ou aos dois, consoante a ira ou a mágoa do momento.
Mas os momentos nunca passaram disso mesmo, mais ou menos breves, nunca fugazes mas sempre passageiros. Até hoje. Hoje fugiu-me o chão debaixo dos pés. Paciência, a gente chega a velho e sabe que o chão se pode acabar, o problema não é esse. O problema é que fugiram também cinquenta e dois anos de vida num só instante, num só gesto, num tiro, numa só loucura que durando um momento apenas, se instalou para sempre naquele lugar que foi de nós dois e onde já não mora ninguém porque eu assim quis sem querer. Mais do que o chão debaixo dos pés foi-se-me o céu que me cobria a vida e garantia a pouca luz que me restava e que agora se escoou no rasto de uma bala. E que se apagou para sempre. Foi-se tudo. Hoje e pela minha mão.
Estou confuso. Estou cansado. E estou velho, pois claro, olha se não, aos setenta e sete anos de idade... Agora não quero saber de mais nada, já não quero mais decidir, opinar, dizer e fazer coisas. Não quero mais nada. Por isso vou-me sentar aqui à espera, até que me levem ou que eu vá por mim e sem tugir. Já não demora, que eu não quero. Vou ter com ela e peço-lhe perdão. É assim que eu quero que seja.
5 comentários:
" Há momentos que sepultam mais do que a própria morte.".
Lá diz o ditado que "Não há bela sem senão ..." ou, citando RVN, (não) se encontra amor perfeito
amor tem de ter defeito
quando se olha mais de perto ...
Diz-me lá, amigo, queres que eu tenha dó do velhinho ???
yeap.
Tretas!
J.C. ficou lá 3 dias e ainda consta do Guiness!
Qual "momentos", qual "yeap"?!
Ponham mas é o gajo a ver o sol aos quadradinhos...em repouso espiritual...a reflectir no momento.... em que ela deixou de ter momentos.
pypamary,
eu cá não quero nada, estou só a dizer coisas.
jcnónimo,
sim senhor, vou já tratar disso.
é só um momento.
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