Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Sapos, monstros e príncipes

Quando Leonor Cipriano regressou à cadeia de Odemira na noite do dia 14 de Outubro de 2004, vinda de mais uma sessão de interrogatório na Polícia Judiciária (PJ) de Faro, o seu estado era de tal ordem que a própria directora da cadeia fez questão de apresentar, ela mesma, uma queixa no Ministério Púbico (MP) por agressões à sua prisioneira.

O cenário traçado pelo MP de Faro para acusar três inspectores da PJ por tortura e outros dois por crimes paralelos deixa antever uma cena de puro horror que terá demorado mais de duas horas. Leonor levou murros e pontapés já depois de atirada para o chão, foi agredida com um tubo de cartão na face depois de lhe ter sido enfiado um saco de plástico na cabeça, foi obrigada a ajoelhar-se em cima de cinzeiros enquanto lhe gritavam que devia confessar os factos e outros mimos que constam da queixa e cujas consequências são bem visíveis nas fotografias entretanto já divulgadas na imprensa.

Leonor Cipriano prestou declarações no passado mês de Outubro, no Tribunal de Faro. A cumprir uma pena de 16 anos de prisão pelo homicídio e ocultação do cadáver da sua filha Joana, insiste em como foi agredida e coagida pelos inspectores a justificar os hematomas na face e no corpo dizendo que tinha caído nas escadas.

O Ministério Público acusa três polícias por tortura, um outro por falsificação de documento e um quinto por falso testemunho e omissão de denúncia. Na inquirição a que foi sujeita no passado dia 17 de Outubro, no Tribunal de Faro, Leonor disse que foi agredida durante cerca de duas horas. Os inspectores contrapõem que a então arguida tentou suicidar-se e caiu por um lance de degraus, uma teoria que andava caída em desuso desde o saudoso encerramento das salas de interrogatórios da Rua António Maria Cardoso, onde é sabido ter sido suicidada muita gente assim.
O papel principal desta história de terror cabe ao ex-coordenador da PJ Gonçalo Amaral, agora afastado da investigação do caso Maddie McCann e já anteriormente referenciado como adepto fervoroso da técnica do estalo no preso durante os interrogatórios.
O caso do espancamento de Leonor está agora em fase de instrução, para decidir se vai ou não a julgamento. Independentemente do resultado da decisão do juiz, fica para a história mais uma aventura de polícias e ladrões à portuguesa, em que uns se distinguem mal dos outros nos métodos que usam e no abuso que revelam. Agora a mulher que foi considerada culpada da morte e ocultação de cadáver da sua própria filha ganhou uma nova dimensão humana, tudo graças à acção da polícia portuguesa. Afinal, posto ao lado de um sapo, qualquer monstro é um príncipe.

RVN

5 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Rui, duvido muito de que tu fosses capaz de resistir a dar umas taponas em alguém que fizesse o que esta desgraçada fez.

Rui Vasco Neto disse...

daniel,
E duvidas bem, meu amigo. É por essas e (muitas) outras que eu sou jornalista e não sou polícia nem tenho a missão de investigar para prender (e não de prender para investigar).
Ora sendo a investigação o processo durante o qual se apura a verdade triando uma série de suspeitos, sendo o número de suspeitos sempre necessariamente muito maior que o dos culpados, imagina tu o estado em que não trarias a tua cara da esquadra mais próxima no dia em que tivesses por um acaso passado perto de uma casa entretanto assaltada...
Estou certo que te pediriam desculpa no fim. Que te serviriam um café. Que te falariam longamente dos malefícios da criminalidade e te dariam pancadinhas cúmplices nas costas, agora já amigos e só até ao próximo estalo.
Não, amigo Daniel. Entre os bons e os maus existem diferenças bem mais substanciais que as reveladas neste episódio. E quando deixarem de existir seremos todos iguais: todos bestas.

Anónimo disse...

Concordo com o Daniel: há taponas que é mal empregado cairem no chão.
Quanto a sermos todos bestas,pois claro que o somos. E ainda bem! É preciso é saber soltar a nossa no momento certo e para as bestas certas.
Já viu,rvn, se arremessássemos um pobre coelho contra uma besta?!
Solte-se a besta que, enquanto ela for dando uns passeiosinhos, não sentirá necessidade de se por aos pinotes.Que isto de bestas são como os sismos:quando passam muito tempo em silêncio, eclodem com estrépido e furor.Ou, num exemplo mais comezinho, como as panelas de pressão.

Rui Vasco Neto disse...

mifá,
Tenho uma panela de pressão. Peguei nela. Procurei e procurei e procurei e não encontrei a Senhora da Paz em lado algum.
Dizes-me onde fica, se faz favor?

Anónimo disse...

Ressalva ao meu último comentário:
"estrépito" (antepenúltima linha).

rvn,
a Senhora está no mesmo sítio; a paz não sei onde está.Nem sei se alguma vez esteve.