O Tribunal da Relação de Lisboa deu razão a um hotel que despediu um cozinheiro com HIV, apesar de ter pareceres científicos que negam a possibilidade real de contágio. Segundo o acórdão deste tribunal, citado pelo Público, a continuação do cozinheiro neste hotel representaria um «perigo para a saúde pública», uma vez que este vírus «existe no sangue, saliva, suor e lágrimas» e por isso, para este tribunal, o HIV poder ser «transmitido no caso de haver derrame de alguns destes fluidos sobre alimentos servidos ou consumidos por quem tenha na boca uma ferida».
Foi desta forma que os juízes da Relação de Lisboa confirmaram uma sentença do Tribunal de Trabalho de Lisboa, mesmo tendo à sua disposição dois pareceres científicos que negam alegados riscos de transmissão do vírus neste caso. Os três juízes desembargadores que assinam o acórdão da Relação - Filomena Carvalho, José Mateus Cardoso e José Ramalho Pinto - tinham ao seu dispor dois pareceres científicos, um deles pedido pela Coordenação Nacional para a Infecção HIV/SIDA ao Centro de Direito Biomédico. Nesse parecer lê-se que "não está provado que um empregado de uma cozinha possa, no exercício das suas funções e por causa delas, transmitir o vírus HIV".
A defesa de António juntou também documentos científicos da agência governamental americana responsável pelo controlo e prevenção da doença (Centers for Disease Control and Prevention - CDC), em que se diz que nunca ninguém foi infectado pelo HIV por transmissão ambiental e que as únicas formas de contágio conhecidas são as relações sexuais não protegidas, a via endovenosa ou por via materno-fetal. Nada feito, mesmo assim. A sentença do Tribunal do Trabalho refere-se ao documento do CDC mas desvaloriza-o dizendo que o caso em julgamento "não tem a ver com riscos conhecidos mas com a possibilidade desses riscos" e que o CDC refere que o vírus também está presente na saliva, suor e lágrimas, o que é verdade. O documento científico em causa refere, de facto, que o vírus pode ser encontrado laboratorialmente naqueles fluidos. Mas também nota que a transmissão por esta via é "zero", mais um dado científico que é ignorado pelo magistrado Martins Alves.
José Vera, responsável pela unidade de tratamento de HIV/SIDA do Hospital de Cascais, afirmou ao 'Público' que dizer que o suor, lágrimas ou saliva podem transmitir o HIV "é um disparate completo" e demonstra "uma grande ignorância dos juízes e, mais do que isso, quase uma teimosia em permanecer na ignorância". O médico diz mesmo estarmos em presença de "mentalidade da Idade Média" e "preconceito no poder judicial".
Inconformado com a decisão da Relação de Lisboa, o cozinheiro recorreu agora para o Supremo, na esperança de ver mudada a decisão inicial de despedimento. O que não se imagina que, mesmo acontecendo, possa alterar as condicionantes de um eventual regresso aos tachos e panelas daquele seu ex-local de trabalho. Por isso, quem disser que alguns direitos fundamentais deste homem foram seriamente beliscados não estará porventura longe da verdade. Tal como quem disser que provavelmente não escolheria um restaurante com um cozinheiro seropositivo para ir almoçar com a família é livre de em teoria defender a injustiça deste acórdão da Relação de Lisboa.
Aqui toda a gente tem uma aparente razão, apetece dizer. Mas sobram três factos, iniludíveis e gritantes. Um, este homem viu ser-lhe negado o direito a uma existência digna por um exercício de mero preconceito, em detrimento de testemunhos científicos absolutamente credíveis que provam a justiça e a justeza da decisão oposta. Dois, este acórdão é uma vergonha para a jurisprudência nacional e uma nódoa de gordura e medo na camisa da decência lusitana. Três, esta decisão da Relação vai seguramente merecer a aprovação, secreta e silenciosa, da esmagadora maioria da população portuguesa que tem cú. Condição primeira para ter medo, como é sabido.
Expostos os factos, ouvidas as partes, martelada a decisão, uma única pergunta mantém a pertinência, exigindo resposta. Afinal qual é o peso e a medida de um Estado que considera apta para o trabalho uma professora com três cancros, que afirma em juntas médicas sucessivas a não incapacidade laboral de um pedreiro que apenas sobrevive acamado e amarrado a uma botija de oxigénio para poder respirar, e que se borra na toga quando ouve falar de SIDA, pondo um ponto terminal na história da vida profissional activa de um ser humano, antes de um tempo que apenas se adivinha, não por "riscos conhecidos mas pela possibilidade desses riscos"?
Inconformado com a decisão da Relação de Lisboa, o cozinheiro recorreu agora para o Supremo, na esperança de ver mudada a decisão inicial de despedimento. O que não se imagina que, mesmo acontecendo, possa alterar as condicionantes de um eventual regresso aos tachos e panelas daquele seu ex-local de trabalho. Por isso, quem disser que alguns direitos fundamentais deste homem foram seriamente beliscados não estará porventura longe da verdade. Tal como quem disser que provavelmente não escolheria um restaurante com um cozinheiro seropositivo para ir almoçar com a família é livre de em teoria defender a injustiça deste acórdão da Relação de Lisboa.
Aqui toda a gente tem uma aparente razão, apetece dizer. Mas sobram três factos, iniludíveis e gritantes. Um, este homem viu ser-lhe negado o direito a uma existência digna por um exercício de mero preconceito, em detrimento de testemunhos científicos absolutamente credíveis que provam a justiça e a justeza da decisão oposta. Dois, este acórdão é uma vergonha para a jurisprudência nacional e uma nódoa de gordura e medo na camisa da decência lusitana. Três, esta decisão da Relação vai seguramente merecer a aprovação, secreta e silenciosa, da esmagadora maioria da população portuguesa que tem cú. Condição primeira para ter medo, como é sabido.
Expostos os factos, ouvidas as partes, martelada a decisão, uma única pergunta mantém a pertinência, exigindo resposta. Afinal qual é o peso e a medida de um Estado que considera apta para o trabalho uma professora com três cancros, que afirma em juntas médicas sucessivas a não incapacidade laboral de um pedreiro que apenas sobrevive acamado e amarrado a uma botija de oxigénio para poder respirar, e que se borra na toga quando ouve falar de SIDA, pondo um ponto terminal na história da vida profissional activa de um ser humano, antes de um tempo que apenas se adivinha, não por "riscos conhecidos mas pela possibilidade desses riscos"?
14 comentários:
A Justiça portuguesa está pelas ruas da amargura.
É gritante a incompetência alarve de certos juízes, contra os quais, pelos vistos, não há nada a fazer.
Que merda de democracia é esta?
silvio,
a nossa, meu amigo.
volte sempre.
Não há dúvida de que os juízes têm ultrapassado as suas competências. Um caso exemplar, pela negativa, foi ter sido ordenada a passagem de ano escolar a um aluno, contra todos os pareceres pedagógicos.
Mas, nesta questão do cozinheiro, a primeira pergunta que me ocorreu, quando ouvi falar do assunto, foi a seguinte: "Quantos dos que se manifestarão escandalizados serão capazes de comer num restaurante que tenha um cozinheiro com SIDA?"
Querem a minha resposta sincera? Eu não comeria. Escuso de fingir.
daniel,
vai ao texto. eu disse isso mesmo...e os juizes pensaram igual.
mas eu sou eu, tu és tu, eles são juizes, porra! talvez um deles seja corno, mas nem por isso deve desculpar o marido que matou a mulher só porque a apanhou na cama com o Zé Castelo Branco.
(achas que uma coisa dessas tem perdão?)
Eu também não comeria. É a história do pelo sim pelo não. Só que não sou eu que tenho de decidir da vida do cozinheiro - eu só teria de sentar o tal cu medroso e, pelo sim pelo não, não o sentava. Da mesma forma que, pelo sim pelo não, não janto com 13 à mesa... Que querem, pelo sim pelo não...
Agora expliquem-me os senhores juizes desembargadores como é que se julga fazendo tábua rasa das evidências e levando em conta este superior interesse do dito cu medroso. E porque é que acham que eu, pelo sim pelo não, tenho o direito de saber se o cozinheiro tem SIDA ou um buraco na meia esquerda.
"Afinal qual é o peso e a medida de uma Justiça que considera apta para o trabalho uma professora com três cancros, que afirma em juntas médicas sucessivas a não incapacidade laboral de um pedreiro que apenas sobrevive acamado e amarrado a uma botija de oxigénio para poder respirar, e que se borra na toga quando ouve falar de SIDA, pondo um ponto terminal na história da vida profissional activa de um ser humano, antes de um tempo que apenas se adivinha, não por "riscos conhecidos mas pela possibilidade desses riscos"?
"
a nossa justiça é tudo menos uma justiça ...
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gostei de conhecer este Blog.
uma boa semana
Ora, não há como ser coerente: eu cá, também, não comia.
É que se:
Quem tem cú borra-se.
Eu tenho cú.
( a estarem certas as premissas)
Logo, (conclusão) eu borro-me.
Claro que lamento o cozinheiro; mas, também, lamento o invisual a quem é negada, por exemplo, a possibilidade de conduzir transportes colectivos.
No caso referido, parece-me haver muitas imprecisões, omissões e, convenhamos que falar de HIV, em termos de certezas e de rigor científicos, é muito pouco certo e nada rigoroso (passe o aparente paradoxo). Quanto ao cozinheiro, cuja situação não deixo de lamentar com toda a veemência, não haverá ofício menos incompatível com o seu quadro clínico?
Assim, inibo-me de julgar o dito julgamento, mesmo correndo dois riscos:
1º defender os magistrados, classe muito pouco da minha simpatia e da minha reverência;
2º incorrer na sanha dos caríssimos comentadores, a começar pela do rvn.
Os exemplos da professora e do pedreiro, quanto a mim, são para serem banidos (parece que o da professora já o foi) como vergonhosos e condenáveis que são, e não para servirem de precedentes, nem legitimarem outros casos.
Franquezinha, acima de tudo!...
teresa,
«E porque é que acham que eu, pelo sim pelo não, tenho o direito de saber se o cozinheiro tem SIDA ou um buraco na meia esquerda.» Essa é que é a questão. Nem se chega às outras...
isabel f,
pois.
mifas,
«E porque é que acham que eu, pelo sim pelo não, tenho o direito de saber se o cozinheiro tem SIDA ou um buraco na meia esquerda.» Essa é que é a questão. Nem se chega às outras.
Rui, não me provoques. Para alguém, homem ou mulher, que se deite na cama com o "conde" Castelo Branco, tudo o que for menos do que um tiro é misericórdia.
O problema do cozinheiro é esse mesmo: ter sido dada a conhecer a sua situação clínica. Se eu tivesse um restaurante, e se fosse tornado público que o cozinheiro era portador do HIV, preferiria pagar-lhe um ordenado, e mandá-lo para casa, do que mantê-lo ao serviço. Pelas razões óbvias que já aqui, nós, pessoas minimamente decentes, já demonstrámos.
O que é que a Justiça tem que ver com as juntas médicas?
Podes explicar?
zé dias,
rigorosamente nada, seguindo a leitura formal e factual que fizeste do parágrafo em causa. não fora o também facto das juntas médicas terem determinado a justiça aplicada nestas duas circunstâncias e eu teria dito um enorme disparate.
assim o que te parece?
Acho que percebi: confundiste a (in)justiça da decisão da junta médica com a Justiça enquanto função do Estado exercida por tribunais.
É isso?
Caso não seja, não vale a pena continuar esta conversa; não por falta de interesse mas para não a estender.
Claro: continuarei a ler este blog.
zé,
Posso garantir-te que teria argumentos para esticar esta conversa mais umas quinze sticadas, pelo menos, sem dar parte de fraco no esgrimir. Seria a irremediável e costumeira (nos outros)lógica do tolo de serviço, que fica a rabiar razões para só parecer que as tem e assim dormir feliz. Mas fui ler e está certo, homem. Foste-me ao pormenor e não me doeu. Vistas as coisas na óptica do caps lock, caixa alta caixa baixa, significado rigoroso, estás de facto coberto de razão. Há um equilibrismo de palavras que se espalha no sentido final se o jota for grande. É legítima a confusão e é legítimo o teu reparo, se não certo. Não se pode querer um texto irrepreensível no rigor e depois exigir uma liberdade poética para palavras como justiça e Justiça.
Caríssimo, volta sempre. Um olho clínico vale ouro.
zé dias,
não me parece correcto emendar no texto, mas adequado corrigir aqui, para completa justiça ao teu reparo.
assim sendo, o texto correcto será:
«Afinal qual é o peso e a medida de um Estado que considera apta para o trabalho uma professora com três cancros, que afirma em juntas médicas sucessivas a não incapacidade laboral de um pedreiro que apenas sobrevive acamado e amarrado a uma botija de oxigénio para poder respirar, e que se borra na toga quando ouve falar de SIDA, pondo um ponto terminal na história da vida profissional activa de um ser humano, antes de um tempo que apenas se adivinha, não por "riscos conhecidos mas pela possibilidade desses riscos"?»
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