Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

As Ceias da Inquisição

Daniel de Sá lembrou-se hoje, vá lá saber-se porquê, das ceias da Inquisição, essa antiga associação de homens bons, peritos em queimar o pensamento dos outros nas fogueiras do seu preconceito. O meu amigo Daniel esclarece: «Previno que historicamente aquilo que eu digo neste "auto" é autêntico. Não inventei nada. Só o diálogo, obviamente.» Irritam-me os escritores, este em particular. Tem tudo que ser dito, muito bem dito, assim?

Em baixo: "A Casa".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.

(Personagens: Martinho – um pobre diabo. Diabo – ele mesmo. Conversam enquanto vêem passar três inquisitoriais figuras.)

Martinho

Este aqui é frei Cirilo,
Homem de grande ciência
E de muita experiência,
A gente pasma ao ouvi-lo.
A sua boca, um primor...

Diabo

Não te percas no louvor,
Eu sei a boca que tem.
Pela pança vê-se bem.

Martinho

Come até lhe dar c’o dedo.

Diabo

E este quem é? Mete medo!
Parece cara de pau!

Martinho

Este é o maior santo
De Portugal e Toledo!
O cardeal Nicolau,
Que é da Santa Inquisição.

Diabo

Essa santa, podes crer,
É da minha devoção.

Martinho

Este outro é o das canseiras
De fazer conta às despesas
De quanto se põe nas mesas.
De jantares e fogueiras
É ele que faz as contas.

Diabo

E tem muitas pra fazer?

Martinho

Mais que as contas em que apontas
As almas que pões a arder.

Diabo

Se eu fosse um homem, agora
Creio que estava na hora
De como dizeis dizer:
“Com mil diabos!”

Martinho

Ou mais!

Diabo

Não sou de me envaidecer...
São muitos os comensais?
Quantos dias a comer?

Martinho

São dois dias para a mesa,
Antes da fogueira acesa.

Diabo

Minha mente está atenta,
Fala-me então da ementa.

Martinho

Salmonetes e linguados,
Mugens, abróteas, safios
(Pois por bem dos seus pecados
À sexta não há galinha)
E muita, muita sardinha.
De doces, várias centenas:
Talhadas de marmelada
Ovos reais às dezenas,
Escorcioneira ralada,
Maçapães brancos, cidrada,
Manjar real e perada,
Pêras, melão e confeitos.
E não ficam satisfeitos
Sem caroucos recheados,
Três pratos de manjar branco,
Quatro gansos amansados,
Trinta arráteis de carneiro,
Sem que nenhum seja manco,
Vinte frangas de poleiro,
Doze frangos bem crescidos,
De uma marrã, quatro quartos,
Mas para ficarem fartos
Serão ainda servidos
Quatro coelhos assados
E muito bem temperados,
E todos mui bem comidos,
Mais três perus e algum pão,
Com grande sofreguidão,
Quinze canadas de vinho,
E há outras mais miudezas
Para encherem as mesas:
Tortas de ovos e toucinho
Com manteiga da que for
Mais própria para a receita,
Que comem disso o meirinho
Tanto quanto o inquisidor.
E nenhuma boca enjeita
Comer pelos condenados:
Promotores, deputados,
O alcaide mais os notários,
Solicitadores mais
Os outros oficiais.
Estes os comensais vários.

Diabo

E é preciso comer tanto,
Pôr em tal tanto fervor,
Até o inquisidor?
Quem quer ser tido por santo
Não se entrega à penitência
Em vez de tal exp’riência?

Martinho

Reza em grande sentimento,
Dá chicotadas no rabo
E até faz muito jejum.
Se o visses em julgamento!...

Diabo

Tal feito não levo a cabo.
Pelo meu cheiro a bedum
Juro que onde há um diabo
Não faz falta mais nenhum.

Diabo

E há ainda a despesa
Das fogueiras, com certeza.

Martinho

A lenha para queimar
Os que vão a condenar.
O pano do sambenito,
Que arde no fogo maldito,
E outras mais miudezas
Que gasta toda a canalha
Que faz do fogo mortalha.
E são estas as despesas.

Diabo

De mim dizes que sou mau...
Chamas santo a Nicolau...

Martinho

Ao diabo que o carregue!

Diabo
Fica muito bem entregue.

(Notas: Escorcioneira – doce feito com os rizomas da planta assim chamada. Caroucos – Compota de vários frutos. )

5 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Daniel

Depois de ler e reler
com orgulho, podem crer,
o que diz Daniel de Sá,
Cheguei cedo à conclusão
que neste mundo de cão
muitos mafarricos há.

Não há fígado sem fel,
há ferrões que trazem mel,
segue o raciocínio meu:
todos temos escondido
um diabo adormecido.
Onde raio para o teu?

É que às vezes não faz mal
passear o animal
com a devida cautela.
Deixa-lha dar uma volta,
mas não lhe ponhas à solta,
tem cuidado. Leva a trela.

O meu também está guardado,
há anos domesticado
e só sei que em mim mora
porque às vezes, sem querer,
se outro diabo o ofender,
já põe os dentes de fora.

Grande Abraço

Anónimo disse...

Ó meu Caro, isto está a pedir uma resposta condigna, o que não quer dizer que eu a dê com dignidade. Veremos.
Um abraço do amigo
Daniel

Rui Vasco Neto disse...

alfredo,
Senta-te e espera, meu amigo. Da última vez tive que pôr três moedas e só saiu poema á quarta...

Anónimo disse...

Perdoem. Na 3ª. sextilha em vez de deixa-lha, deve ler-se deixa-o. É óbvio.
Daniel: Não me venhas massacrar por isso!!!

piedade disse...

Alfredoooooo!!! (psiuuu !!!) "mas não o ponhas à solta " - 3ª sextilha também !!!