Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


domingo, 27 de janeiro de 2008

Esta Lisboa que eu amo

Houve um tempo em que Lisboa tinha sardinheiras viçosas de orgulho luso nas sacadas do seu bairrismo alfacinha. E pregões de varinas, se andarmos para trás, para não falar de aguadeiros e marialvas, claqueiros e fava rica em alcofas, venha ver ó freguesa. Os eléctricos faziam tlim tlim e os de manhã cedinho tinham bilhete de operário, custava poucos tostões. O Pinga jogava na selecção, comiam-se cocós na Ferrari e a GNR intervinha a cavalo na estreia dos 'Sarilhos de Fraldas', com António Calvário e com o mulherio nacional a arrancar cabelos à porta do Odeon sem saber que gritava em vão por uma causa perdida.

Tudo isto não é triste mas é fado, tão somente. Esta Lisboa das tipóias e ché-chés já não existe há muito, foi-se nas mil madrugadas de ontem e só surge, sebastiânica, no doce nevoeiro cerrado que traz a digestão de muitos copos goela abaixo e muita conversa goela fora, em noite de amigos acabada na saudade do 'acabou-se!'. De resto, conservar as tradições em álcool é uma arte fadista, morra quem se negue e acho muito bem. Esta saudade é a diminuta perfeita e consequente deste acorde natural de ser português e estar vivo, um trinado das guitarras que somos hoje, todos nós, enquanto povo e nação. Só que a melodia que se escuta nesta Lisboa dos nossos dias tem tons diversos, variados, muita influência de cítaras e oboés estranhos, berimbaus e tantans, muito flautista e muito rato atrás, diga-se também em abono da tal.

A minha Lisboa de hoje é um embrulho estranho com uma bomba de preconceituosa indiferença terrorista lá dentro, que explode todos os dias em cada esquina do nosso viver. Os estilhaços atingem-nos a todos, mais ou menos fundo, directamente ou por interposto ferimento, dê a gente por isso ou não. Lisboa tem tantos feridos nesta guerra da modernidade como qualquer outra urbe de dimensão capital que, por mais não queira abrir os braços aos estrangeiros, acaba sempre por lhes abrir as pernas. Lisboa não sejas francesa, com toda a certeza não vais ser feliz, lembram-se? Pois cá estamos depois de séculos, com franceses só de calções e no Verão, mas a comprar todas as manhãs nos chineses e indianos, construindo casas com os guineenses e ucranianos, almoçando no bairro o que nos traz à mesa o moldavo de serviço. É de todos eles esta Lisboa? Pertence-lhes por direito esta cidade onde vivem e trabalham e são a cor viva do moderno 'colorido local'?

É esse o grande conflito nacional da cidadania, a partilha e usufruto qualitativos das ruas que são de todos mas onde só nasceram alguns, nestes tempos de aumento exponencial dos uns que, aos olhos dos outros, não merecem quinhão igual ao seu. Mendigos, ciganos, pedintes, drogados, pretos, amarelos, castanhos e outros mil que aqui desaguam de muita nascente. Gente que a gente quer menos gente que a gente é, ou julga ser. Sub-gente, é forte? E se forem pequeninos, são filhos como os nossos filhos, ou são filhos da puta? Só há filhos da gente e filhos da outra, na credenciação lusitana, nenhuns outros?

Corro Lisboa a olhar e saltito realidades como quem evita caca de cão, no passo de passeio. Dou um pontapé numa pedra e salta um preconceito, mais um, e outro e outro. E forço-me a pensar com o coração, sempre que a alma se veste alfacinha. Às tantas a gente quer tanto gostar de uma coisa que acabamos a amar a ideia dessa coisa e nada mais. Uma paixão pelo imaginário abstracto da paixão de cada um, é essa a imagem focada do bairrismo nacional. E quantas vezes se engrossam fileiras de loucura garantindo que só se quer fugir dela, tudo para defender esse preconceito a que chamamos bairrismo. Lisboa é dos lisboetas e é dos vadios, sim, porque vadios somos todos nós nesta sociedade mesquinha que se olha de lado até ver a etiqueta de cada um. Somos todos operários da mesma fábrica, porque ser povo é uma trabalhalheira, não é um emprego. E se fosse um emprego, acreditem, éramos todos chefes.

9 comentários:

Sabina disse...

Pronto Rui.

Eu bem sei que ontem estava eufórica. Disse-lhe que Lisboa era minha e não sua. Coisas de miúda atrevida, sei lá. Não era preciso ir buscar argumentos de peso e criar este texto belíssimo. Não tenho nada a declarar, nada a acrescentar com medo de estragar o texto.

Talvez Lisboa seja de todos ou uma oferecida que se dá a quem lhe dá mais. E talvez por isso, troquei-a pelos ares do Mar. E esse, é assumidamente de todos. E não lhe cai mal. Privilégios do género, com certeza.

Anónimo disse...

Insaciável, só direi que este texto está maravilhoso se descobrires que letras troquei (ou eventualmente estão a mais) no que abaixo deixo escrito:
O Rui é mau amigo, aborto de ideias, porco em conversas úteis e bom faxista.

Sabina disse...

Daniel

Partindo do princípio que é amigo do Rui e por isso só diz coisas boas dele, é fácil concluir que ele é seu amigo, aberto de ideias e um bom fadista.

Ainda ando aqui à volta com o porco sem bem que parco em ideias fúteis também lhe assentava bem, não?

Ok, rebuscado, admito. Vou ali dopar-me com cafeína e nicotina e entretanto venho matar o porco.

Anónimo disse...

Muito bem, insaciável, é isso mesmo.
Então, como prometi,declaro que esta crónica do Rui está excelente.
Um abraço.
Daniel

Rui Vasco Neto disse...

daniel,
explica a este cepo: então agora cobras pelos elogios que fazes à minha escrita? e se a nossa saci não fosse espertinha? e eu, que ainda estava Às voltas com a solução e, trinta anos depois da única cábula que fiz para um exame (que não cheguei a usar, lamentavelmente, que estava tão bem feitinha) dou por mim a vir aqui ver a solução do teu enigma...

Sabina disse...

Realmente Rui eu também ficaria chateada se os meus amigos cobrassem pelos elogios...

Valeu-me o porco que aparentemente era parco caso contrário não se lia uma letrinha do Daniel em relação a este texto.

Bjos
Saci

piedade disse...

Pois é ! Descer a Avenida da Liberdade a pé e subir ao Bairro Alto, comer um bife na Trindade e a seguir ir aos Fados, ali mesmo, já não é o que era ??? Texto bonito, sem dúvida, mas triste, muito triste, minha rica menina !

Anónimo disse...

Vê lá, Rui, como tens gente amiga. A Saci conseguiu perceber aquilo de quem nem tu, o principal interessado, foste capaz!

Rui Vasco Neto disse...

saci, daniel,
as mulheres são assim, vêem aquilo que nos escapa. por isso é que a gente não escapa aos que elas vêem.

pi,
pois foi, vê lá. chatice. coitado.