Desde que o mundo é mundo que o Homem dobra o joelho e diz 'santinho' sempre que o divino espirra. Nos Açores, o divino constipa-se com frequência e espirra com uma força que assusta. Vem também daí a cepa das nossas gentes, tementes a Deus e sempre confiantes na existência de um amor maior que as abraçará na hora certa. Daniel de Sá não assinaria estas palavras, que é o meu sentir a ditar. Mas assina estas que se seguem, mais e melhores para descrever a hora em que céu e terra se tocam por um instante. Quando por um instante apenas, por um longo, longo instante, ninguém sabe muito bem de que lado vai estar no instante a seguir.
(RVN)
(RVN)
Em baixo: "Tremor de terra, temor do céu".
Sete vidas mais uma: Daniel de Sá.
Ninguém tem memória de mortos ou feridos na freguesia por causa de terramotos, e há muros velhos com décadas ou séculos, casas feitas de pedras pequenas, muitas trazidas do calhau da Gorreana ou de outros lugares da costa, e coladas umas às outras com barro, que se mantêm de pé apesar dos tremeliques do chão. Mas um tremor de terra apavora e devolve aos homens, se a têm esquecida, a consciência da sua fragilidade. O tremor de terra é breve enquanto acontece, mas tarda muito a passar depois de ter acontecido, e é a memória que o faz longo. Uns segundos apenas (dez... doze... catorze...), mas ficam as suas sensações recordadas, revividas: o chão que se sacode debaixo dos pés, as portas e as janelas que rangem, a armação da casa que ameaça desmoronar-se como ossos de um monstro gigantesco a estalarem, o tecto que se move em ondas invertidas, as chávenas que se balançam com o som de campainhas, uma leve vertigem, o urro final em que se julga que tudo vai desabar sobre a gente e que a gente se vai misturar aos escombros de um mundo desfeito. E, de repente, a quietude total, enquanto se vão calando as campainhas, como se um tropel de cavalos enlouquecidos se tivesse aproximado num galope subitamente interrompido.
António sentiu o maior tremor da sua vida, estava ele na igreja, uns minutos antes de começar o Te-Deum. Acabara de entrar com a mãe e as irmãs e ainda rezava saudando o Santíssimo exposto. Percebeu primeiro uma vibração das tábuas do estrado debaixo dos joelhos, como a de um sobrado quando alguém, sentado numa cadeira e com a ponta do pé assente no chão, agita a perna de cima para baixo em movimentos muito rápidos. Não entendeu de imediato do que se tratava e, olhando à volta, notou o mesmo ar de admiração em rostos que se viravam também para um lado e outro à procura de explicação. Então as grossas pilastras, que dois homens mal conseguem abraçar, foram sacudidas violentamente, com a nave da direita a parecer que tombava para sul e a da esquerda para norte. Os lustros, com as velas todas acesas, balançaram num chocalhar de pingentes, deixando rastos de fumo e fogo a riscar o ar. Um ronco tremendo subiu, como se o chão estivesse a abrir-se, as pilastras foram sacudidas com mais violência para fora e para dentro, o arco da capela-mor torceu-se como roupa molhada a ser batida pelas lavadeiras, os escarradores chocalharam nas lajes, o petróleo respingou dentro dos candeeiros, e um estrondo abalou a igreja desde os fundamentos, provocando um estoiro no tecto, ao mesmo tempo que uma nuvem de cal, que pareceu por momentos ser a abóbada a desabar, caía sobre o povo em pânico, que gritava aterrorizado, com algumas mulheres a saltarem para cima das grades do cruzeiro ou a subirem para as cadeiras ainda vazias que pertenciam às senhoras de estatuto e lhes marcavam e reservavam presença e comodidade junto ao altar do Senhor. Fugiam do medo que vinha do chão como se o perigo não estivesse no alto. António continuava de joelhos, sem tempo ainda para ter medo, e, quando viu cair a cal, julgando que era o tecto, apenas pensou: “agora é que eu vou saber como se morre num tremor de terra.” Dito isto para si mesmo, verificou que a nuvem branca fora apenas cal e que tudo permanecia tão seguro e quieto como se nada de anormal se tivesse passado. Mas as pessoas que vinham na rua a caminho da igreja mal se aperceberam do tremor. Houve quem se lembrasse de ter ouvido ranger uma cancela ou de um qualquer outro ruído estranho, mas sem ligar tais sons à sua causa. E não mais do que isso.
António sentiu o maior tremor da sua vida, estava ele na igreja, uns minutos antes de começar o Te-Deum. Acabara de entrar com a mãe e as irmãs e ainda rezava saudando o Santíssimo exposto. Percebeu primeiro uma vibração das tábuas do estrado debaixo dos joelhos, como a de um sobrado quando alguém, sentado numa cadeira e com a ponta do pé assente no chão, agita a perna de cima para baixo em movimentos muito rápidos. Não entendeu de imediato do que se tratava e, olhando à volta, notou o mesmo ar de admiração em rostos que se viravam também para um lado e outro à procura de explicação. Então as grossas pilastras, que dois homens mal conseguem abraçar, foram sacudidas violentamente, com a nave da direita a parecer que tombava para sul e a da esquerda para norte. Os lustros, com as velas todas acesas, balançaram num chocalhar de pingentes, deixando rastos de fumo e fogo a riscar o ar. Um ronco tremendo subiu, como se o chão estivesse a abrir-se, as pilastras foram sacudidas com mais violência para fora e para dentro, o arco da capela-mor torceu-se como roupa molhada a ser batida pelas lavadeiras, os escarradores chocalharam nas lajes, o petróleo respingou dentro dos candeeiros, e um estrondo abalou a igreja desde os fundamentos, provocando um estoiro no tecto, ao mesmo tempo que uma nuvem de cal, que pareceu por momentos ser a abóbada a desabar, caía sobre o povo em pânico, que gritava aterrorizado, com algumas mulheres a saltarem para cima das grades do cruzeiro ou a subirem para as cadeiras ainda vazias que pertenciam às senhoras de estatuto e lhes marcavam e reservavam presença e comodidade junto ao altar do Senhor. Fugiam do medo que vinha do chão como se o perigo não estivesse no alto. António continuava de joelhos, sem tempo ainda para ter medo, e, quando viu cair a cal, julgando que era o tecto, apenas pensou: “agora é que eu vou saber como se morre num tremor de terra.” Dito isto para si mesmo, verificou que a nuvem branca fora apenas cal e que tudo permanecia tão seguro e quieto como se nada de anormal se tivesse passado. Mas as pessoas que vinham na rua a caminho da igreja mal se aperceberam do tremor. Houve quem se lembrasse de ter ouvido ranger uma cancela ou de um qualquer outro ruído estranho, mas sem ligar tais sons à sua causa. E não mais do que isso.
2 comentários:
Daniel de Sá:
O seu escrever comove-me não raras vezes. E fico muito contente de o ver em tão boa companhia neste blogue já o disse repetidas vezes e hoje ainda em dois comentários em outros blogues. Os meus parabéns por mais este conto tocante e bem escrito, como sempre.
Rui, afinal há outra Rosa! E que Rosa, esta! Meu Deus, como vou agradecer o seu perfume?
Não sei. Por isso apenas pasmo.
Obrigado, querida Rosa.
Daniel
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