Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Os Fundamentais

Estou navegando por aqui e acabo a ler sobre as recentes declarações do Secretário de Estado das Comunidades, António Braga, que garante não haver portugueses infectados pelo vírus H5N1 da gripe das aves, detectado numa criação de Inglaterra. Inevitavelmente, penso nas aflições de há ano e meio, mais coisa menos coisa, com a barraca do Oseltamivir e do conceito de 'portugueses fundamentais. Lembram-se? E salta do motor de busca este texto, publicado na altura. Não resito à publicação. Que querem? Sempre fui de fazer filmes.


Hoje vou fazer um filme. Uma coisa assim tipo Spielgberg, uma grande produção como o “Twister”, sobre o poder destruidor dos tornados, ou a “Epidemia”, com Dustin Hofman, sobre um vírus mortal que os Serviços Secretos tentam desesperadamente esconder. O meu filme vai ser sobre a gripe das aves. Vou basear-me em factos reais e imaginar um possível cenário de pandemia. Deus nos livre, claro! Mas os actores são reais, a ameaça é real, os stocks de tratamento existentes também são tristemente reais: Portugal dispõe de onze mil tratamentos de ‘Oseltamivir’, o antiviral mais eficaz que existe para combater o temido H5N1. A fantasia vai estar em imaginar que o pior acontecia e que o Estado tinha que pôr em prática o plano anunciado pela Sub-Directora Geral de Saúde, Graça Freitas. A notícia também é real e é fresca: “Cem mil portugueses considerados fundamentais para o país, devido aos cargos que ocupam, vão receber tratamento antiviral em caso de pandemia provocada pela gripe das aves”. O anúncio foi feito ontem pela sub-directora geral de saúde, Graça Freitas, que baseou a decisão do Estado num “levantamento levado a efeito pela Direcção Geral de Saúde sobre a quantidade de trabalhadores considerados prioritários para o país”. Eis o meu argumento. O cinema é a arte do faz de conta, certo? Então vamos a isso. “Os Fundamentais”, cena 1. Luzes. Câmera. Acção.

Começa com um grande plano do Palácio de Belém. O rosto crispado do Presidente invade a tela e o zoom vai abrindo para mostrar uma sala cheia de gente de manga arregaçada, em fila indiana para receber a injecção salvadora. Ouve-se um burburinho crescente na antecâmara do gabinete presidencial. Caem gotas minúsculas de suor da fronte do Presidente, que é o primeiro a ser vacinado. Entra uma secretária com uns papéis na mão. É a lista da Direcção Geral de Saúde com os nomes dos Portugueses Fundamentais, versão revista e corrigida, 175ª actualização. O burburinho aumenta e é já possível distinguir uma ou outra voz mais exaltada. “Claro que sou fundamental, sua besta!” É Valentim Loureiro que acaba de entrar. Os telefones não param de tocar. Há telefones de todas as cores, um vermelho, um verde, um amarelo e até um cor de rosa com a gravura da Barbie, que pertence à esposa do Presidente. Todos tocam. A décima quarta secretária da secretária da primeira dama atende o telefone da Barbie. È o estilista da primeira dama a recordar que também é fundamental. Ela agradece e atende o telefone amarelo. Um assessor fala no telefone verde claro com o primo do sogro do senhor ministro, e ouvem-se vagamente as palavras ‘fundamental’ e ‘tenha paciência’. A conversa acaba mal. No verde escuro está a empregada do irmão da cunhada do tio do senhor presidente, que tem muita urgência em falar a Sua Excelência. Manda dizer que é fundamental que Sua Excelência atenda porque ela vem da parte de uma pessoa que também é Fundamental e que é muito amiga de Sua Excelência e da esposa. Os gritos são agora perfeitamente audíveis e as vozes reconhecíveis ao longe. “Quem disse que eu não era fundamental, seu idiota?”. É Teresa Guilherme quem grita, não há dúvida. “Com licença, com licença”. A multidão abre um corredor dar passagem à equipa do Futebol Clube do Porto, com Jorge Nuno Pinto da Costa à frente. Ouvem-se muitas palmas e alguns assobios também. Os GOE consultam a lista e mandam avançar a equipa para um perímetro de segurança, todo rodeado a arame farpado e com uma placa a dizer ‘Portugueses Fundamentais’, onde já aguardam as suas vacinas as equipas do Rio Ave, do Nacional, do Benfica e do Herman Sic. A câmera mostra uma Lili Caneças desfeita em lágrimas, abraçada a Marques Mendes, da equipa dos Fundamentais do PSD, e a Freitas do Amaral, que não sabe a que equipa pertence. Como se trata de uma produção nacional, a fita acaba bem. Depois de um grande plano do Presidente a anunciar ao país um ‘inquérito rigoroso’ à situação, a derradeira imagem mostra o casal presidencial sorridente, mangas descidas e rostos colados num abraço terno. The End.

1 comentário:

Ângela disse...

Pois...
Somos todos fundamentais: uns para gastar do erário público, outros para permitir que haja verbas para os primeiros gastarem.
Num caso de epidemia não vacinem os segundos e vão ver como as vacinas não serviram para nada...!
Fundamental por fundamental, prefiro o cozinheiro da "Portugália" a qualquer Ministro!!
Kiss