Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Janeiro, dia um: a tradição de ter uma tradição.

Dormi como um justo. Como já não dormia desde o ano passado. O Juvenal acordou-me às oito, como de costume, mas na bandeja do pequeno almoço lá vinha escarrapachada a diferença da data: espetada no meu brioche de trigo e algas ondulava uma bandeirinha de pano a dizer 'Feliz 2008', feita em ponto de cruz desenhado pela velha Marianinha nos seus serões à lareira da cozinha da criadagem. Foi a primeira coisa que fiz desaparecer, discretamente, para fundo debaixo dos lençóis enquanto o Juvenal abria os reposteiros das janelas do terraço que dá para o jardim. A luz do lado leste, que entra pelas janelas que dão para o mar, incomoda-me sempre pela manhã. Nunca deixo que ele as abra.

Vesti-me depressa. Evitei aborrecer-me com aquela rapariguinha nova, nunca sei como elas se chamam, aquela que agora me calça os sapatos em vez do Sebastião, que anda adoentado das costas e custa a dobrar-se de manhã. Os meus pés ressentem-se, é certo. A diferença é enorme, para bem pior, entre o trabalho de uma e o do outro. Ela até é gira, tem maminhas e ele não, mas sinto-lhe a falta, coitado. Comentei isso mesmo, hoje, com a Fanny e com a Melissa, enquanto me vestiam a camisa. Estava tão distraído na conversa que eu próprio dei o nó da gravata, só espero que a Locas não tenha ficado aborrecida.

Adoro conduzir de manhã no primeiro de janeiro. Não se vê vivalma, é uma paz, o mundo inteiro só para nós. Acreditam que nem um pássaro se cruzou comigo desde que saí de casa até chegar ao Gigi? Aterrei sem problemas, graças a Deus. Mais cinco minutos e tinha havido chatice com o helicóptero do Damásio, que chegou logo a seguir com a Margarida. Mas vá lá. Acabámos por almoçar todos em grande galhofa, como é tradição em todos os dias um de Janeiro. E dissemos mal de toda a gente como é tradição em todos os dias do ano. Fumámos, claro, olha se não, era o que mais faltava, então...?! Embora ache muito bem que o povo seja obrigado a cumprir a nova lei. É para o bem de todos lá, no fundo. E para o bem de todos, lá no fundo.

A tarde foi passada no Bridge, como é tradição no nosso grupo. Escapei-me uma mei'horita para fazer amor, outra tradição que sigo à risca todos os dias um de Janeiro. Voltei à mesa só para recolher os ganhos e despedir-me de todos. E voei para casa. Agora não há tempo a perder. Tenho à justa o necessário para tomar um banho de sais. E mesmo assim não me posso distrair na conversa com a Leila da esponja amarela, nem perder-me em marotices com o resto das miúdas dos sais. È tomar banho e andar, rapidinho que são quase horas de chegarem os primeiros convidados para a festa e a criadagem não passa sem orientação superior. Não vos disse ainda? Ai, esta minha cabeça! Perdoem-me, é a excitação. Todos os anos, no primeiro de Janeiro, eu recebo uns amiguinhos e amiguinhas para uma grande festa nos jardins aqui da mansão, um fórròbódò que dura até de manhã, vem a Carolina ex, o Santana Lopes, malta da bola, a Lili eterna e o Carlos Castro. E sai sempre na VIP e na Caras. É a tradição.

Este ano escolhi o Jardim Tropical porque lá sempre se está mais abrigado e fica só três alamedas abaixo do Jardim das Flores, onde fizemos a festa do ano passado. O sítio é lindíssimo, tem uma fonte que é um urinol de anjinhos ou assim, com umas pilinhas muito giras, pequeninas, uma maravilha de antiguidade que comprei em Itália há muitos anos e que agora deve valer para cima de uma fortuna, ou mais. E depois é tudo gente que é da casa, praticamente, uma coisa muito íntima, reservada, nunca mais de quinhentas pessoas, nunca, nunca. E é sempre jantar volante, tudo de pé junto ao lago, espalhados pelas margens, tudo iluminado, é tão bonito... Faço absoluta questão que sejam jantares volantes, sempre, todos os anos. Detesto aqueles longos jantares convencionais nesses dias um de Janeiro em que faço amor. É também uma questão de tradição, claro, mas não só, confesso. Por melhor que seja a companhia à mesa nesses dias, dói-me sempre um bocadinho ainda, da tarde. Custa-me estar sentado tanto tempo.

Esta noite quero deitar-me cedo, está prometido a mim mesmo. Afinal, um homem tem que descansar. A vida são dois dias e está cada vez mais difícil para todos. E a tradição também já não é o que era, digam lá o que disserem. Mas viva dois mil e oito, pronto.

7 comentários:

samuel disse...

Estou mais triste que a cegonha no dia do referendo sobre o aborto, mas este ano não posso comparecer na sua festa, rico!
Os parvalhões da equipa de bordo do meu Falcon (piloto incluído) lembraram-se de ter uma virose, coisa de pobres, aqui em New York...
(Nem sonham ainda o quanto estão despedidos!...)
Fica para o verão, tá?

Teresa disse...

Olha outro que também acha que é má sorte não ter sido puta....
(é muito grande para pôr aqui, mas podes ver no sítio do costume, onde já foste de certeza mas não deixaste rasto.... - http://cabradeservico.blogspot.com/2007/12/m-sorte-no-ter-sido-puta_5570.html)

Rui Vasco Neto disse...

sam,
'mais triste que a cegonhe em dia de referendo sobre o aborto' é do melhorzinho que eu já ouvi este ano; só começou hoje, é certo, mas pensa bem a quantidade destas e de outras que vamos parir daqui para a frente, e diz-me se pelo menos isso não alegra a cegonha...

cabra fina,
'Como se sabe, e por inerência de funções, puta que se preze tem contas pagas, salário garantido e cartão de crédito com um plafond mais elástico que as ligas das meias.'
Não é o meu caso, que tenho posses. Temos pena. Mas adorei o seu texto. Adorei mesmo. Achei um belo objectivo para 2008, somos tudo o que quisermos ser, como sabe.
E sempre que quiser cabrear, já sabe: não hesite em avisar, como hoje. Com link ou com o próprio texto, mi casa está ao dispor para todos (enfim..) os seus avisos.

Sabina disse...

"dia um de Janeiro em que faço amor" parece-me uma frase digna de registo....

Pena que eu não fui convidada...para a festa, entenda-se ;-)

Rui Vasco Neto disse...

saci,

Permita-me a correcção: "esses dias um de janeiro em que faço amor" foi o que eu escrevi. Faz toda a diferença, na circunstância. Um mundo de diferença. Se não fosse assim seria como a velha história do padre que pergunta à sua assembleia 'quem faz amor uma vez por semana?' e levantam-se 50 pessoas; 'quem faz amor uma vez por mês?' e levantam-se quatro, cinco pessoas, até que a pergunta é 'quem faz amor uma vez por ano?'. Aí levanta-se um homem aos gritos 'sou eu, sou eu, sou eu!!'. O padre pede calma e quer saber porquê a gritaria. 'Porque é hoje, é hoje, é hoje!!', responde o homem. Que era eu, claro.

Quer um convite para a próxima festa?

Sabina disse...

Peço desculpa pela minha versão resumida, quase redutora da história.

Com certeza que sim, que quero um convite para a próxima festa. Pena é que só seja no próximo 1 de janeiro....

Rui Vasco Neto disse...

saci,
o tempo é uma coisa muito relativa.
e as datas também.