Gostava de encontrar o tom certo para dizer aquilo que quero escrever neste momento. Um tom asséptico, factual e distante das emoções, o que nesta circunstância já seria difícil se o assunto fosse caracóis. Ou orquídeas. Ora o assunto aqui é jornalismo e isso complica tudo. É abominável o tom censório e o falso moralismo dos habituais donos da verdade, jamais o arriscaria em consciência. É caricato o tom arrependido do pecador reformado, e para mais fica-me curto nas mangas. Tem que ser um tom audível e cristalino na sua clareza, isso eu sei, algo entre o firme e o hirto. E nada de meios tons, toda a indignação por inteiro sem por isso comprometer a justeza da convicção. E sem semitonar, sempre afinado na alma. Tentemos, pois. Vamos aos factos.
O Diário de Notícias de ontem escolheu publicar duas fotos de Alexandra Neno, assassinada sexta-feira passada em Sacavém, mostrando dois momentos do fim da jovem, entre tentativas de reanimação e exame policial, camisa rasgada e seios expostos, um corpo como tantos outros de outros tantos flagrantes do crime urbano, aqui ou na América, Brasil ou Venezuela. A primeira foto faz a chamada de capa em formato reduzido, a segunda surge centrada nas páginas 2 e 3, já em formato ampliado. Na foto de capa, o jornal optou por acentuar um efeito de luz na imagem para semi-desfocar o peito nu de Alexandra, mas na foto interior o aproveitamento da morbidez tem intenção total e tão evidente como escusada: a foto da capa já era furo bastante. De resto teve dupla publicação, simultânea com o 24Horas, o que, mesmo sendo uma estratégia compreensível, não deixa de ser uma cumplicidade de mercado algo bizarra, convenhamos.
Gostava de encontrar o tom certo para dizer aquilo que estou a escrever neste momento. É certo que um corpo é apenas um corpo, como tantos outros de outros tantos flagrantes do crime urbano, aqui ou na América, Brasil ou Venezuela. Eu tenho consciência desse facto, conheço e defendo na essência os critérios que presidem à publicação diária dos milhares de imagens que ilustram (e ainda bem) a nossa informação. E não sou ninguém para leccionar ética, nem pretensões tenho a ser alguém assim. Só pergunto se este critério em particular não se esticou um nadita, se não terá passado da linha que marca o fim do furo jornalístico e acabado por enterrar o pé num buraco jornalístico em vez do furo, nas bordas do decoro. É que Portugal não é a América, o Brasil ou a Venezuela. E qualquer semelhança só pode ser uma lamentável coincidência, nunca encorajável com inopinadas latitudes editoriais vindas do grande jornal diário de referência. Digam-me, por favor, se vejo mal. Eu, sinceramente, não gostei. Achei gratuito e de mau gosto. Uma página escusada no DN, digo com pena. No tom certo, espero.
1 comentário:
Totalmente correcta esta análise.
Tristes momentos se vivem também na classe jornalística. Jornalismo sensacionalista, ou será contaminação por osmose dos CM e 24h?
A única coisa a acrescentar é que, na minha opinião, a distância entre Portugal e os países da América do Sul referidos já não ser assim tão notória. Com fortes probabilidades de se agravar.
Os índices de violência crescem assustadoramente, a perturbação social acompanha e a recessão económica ímpar desde a 2ª Guerra Mundial promove.
Enfim, preocupante, muito preocupante...
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