Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Homens, meninos e maçãs

Menino ainda, lembro-me de ter pensado pela primeira vez em 'homens que não tiveram tempo para ser meninos' quando descobri a frase, nos 'Esteiros' de Soeiro Pereira Gomes. As desventuras dos putos do tijolo, os desvarios com a Louca a ensinar-lhes a vida, o filho daquela que não deitava fora o Inverno. Lembro-me de achar duas coisas. Que não haveria maior desgraça que ser homem sem ser primeiro menino. E que bom que era aquilo só acontecer nos livros.

Mais tarde lembro-me de muito e sem ordem de chegada. Lembro-me das caras dos garotos que arrastavam os seus pais e professores pelas ruas, tosquiados, amarrados, espancados e de cartaz ao peito com insultos, para neles cuspirem e baterem na praça pública de uma China exultante no crime. Lembro-me do rosto do ódio dos Khmers no Cambodja, escassas dúzias de anos armadas até aos dentes que só se viam em gritos, nunca em sorrisos. Lembro-me dos mesmos rostos e do mesmo ódio mas em preto e branco, aqui e ali e ali e ali nessa África tão imensa em tamanho como em selvejaria e estupidez.


Lembro-me das expressões assustadas de uns gaiatos loiros de uniforme nazi, apanhados de armas e calças na mão nas derradeiras barricadas de Berlim e quantos fuzilados na hora, por tolice e imaturidade. E lembro-me do relatório da Human Rights Watch (HRW) que acusa o Exército de Myanmar de recrutar crianças à força para suprir a falta de soldados voluntários e a alta taxa de deserção no exército. Claro que me lembro, foi publicado hoje.

Crianças de até 10 anos que são arrancadas ás famílias, espancadas e ameaçadas de prisão e assim forçadas a entrar nas forças armadas de Myanmar através de recrutadores militares ou intermediários civis que recebem dinheiro do Exército por cada uma. Jo Becker, representante da HRW, disse hoje à BBC que o país «está literalmente comprando e vendendo crianças» para preencher as fileiras do Exército. «Os generais do governo toleram o ostensivo recrutamento de crianças e não punem os responsáveis. Nesse ambiente, recrutadores do Exército traficam crianças livremente».

Menino ainda, lembro-me de ter insistido em plantar um belo rebento de macieira, certa vez, num caminho que era pisado e calcado por toda a gente. Fui avisado e avisado, vezes sem conta. Insisti. Só deu merda. Não saiu uma única maçã de jeito.

RVN

5 comentários:

samuel disse...

Desde muito, muito antes dos Esteiros e até hoje, continuamos a viver num filho de puta de um romance neo-realista... por muito que o género desagrade aos snobs da literatura.

Anónimo disse...

Caro Rui,
Sinto-o a expiar uma tristeza e uma revolta instalada na alma e isso, na condição de amiga, entristece-me. Permita-me que lhe diga que, também, há histórias com finais felizes e que é bom acreditar no sonho e na capacidade de sonhar. O belo rebento de macieira que plantou, em menino, deu frutos e bons frutos, sim senhor,e eu sou testemunha deles quando ao olhar nos seus olhos, meu amigo, vejo a alma boa que eles espelham.
Aquele abraço e a amizade de sempre

Rui Vasco Neto disse...

samuel:
e a gente, lê pelos críticos?

euláli:
ás vezes surpreendes-me.
o que é incrível, diga-se.

rvn

Anónimo disse...

Viu a reportagem da Alexandra Borges feita no Gana?
Vamos juntar a esta lista a infelicidade das crianças vendidas ali por 30 euros, que vão trabalhar para longe, já pertença dos pescadores que as compram. Homens (!?) que fazem delas verdadeiras escravas, que as maltratam, que não as alimentam, que as obrigam a trabalhar noite e dia nas lides da pesca. Crianças com cinco, seis, sete anos, doentes, estafadas, famintas, dorídas do abandono familiar a que foram votadas. Crianças inconformadas, aterrorizadas, que acabam por morrer sozinhas.
Há um movimento criado a seu favor, género: "adopte" uma destas crianças!
É preciso ajudar aqueles que, pouco a pouco, as vão resgatando aos pescadores. Às vezes, em troca de uma nova rede de pesca... Gostaria de voltar a este assunto (em que estou empenhada), importa-se, RVN? Para dar notícias do andamento deste movimento e da forma como ele pode processar-se.
Sou amiga da Manuela Câncio Reis, como fui íntima amiga da Alice Gomes (viúva e irmã de Soeiro Pereira Gomes). Os "Esteiros" estão ali mesmo ao lado. O meu "quatel-general" fica em Alverca do Ribatejo...

Abraço da Sol

Rui Vasco Neto disse...

sol,
estou de acordo consigo, claro.
é urgente a ajuda para quem sofre e só se é criança uma vez.
mas (a despropósito) tenho presente o caso da Arca de Zoé, no Chade, apanhada a traficar crianças ao abrigo da cobertura de ong de ajuda.
o caso não mudou a minha convicção que ajudar é preciso, mas fez-me pensar mais seriamente que ajudar não é para todos.