Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Uma questão de imagem

Há imagens terríveis. Fotos, filmes, quadros, desenhos, imagens. Dispensam as palavras para contar as suas histórias. Registam a memória, imóvel no tempo que já passou. E num qualquer outro tempo, tempos e tempos passados, exibem a mesma história mesmo quando a História já a quis mudar. Estaline mandava retocar as fotos de grupo, sempre e de cada vez que mandava retocar uns amigos. Já Hitler queria a sua verdade intocável para sempre e fazia questão absoluta de guardar o horror dos outros em imagens de arquivo que eram o espelho da sua glória. O fascismo sempre primou pelas botas luzidias das suas convicções e pela ausência de rugas no vinco impecável da ordem pública.
É hoje asunto do dia a beatificação de 498 mártires espanhóis, mortos pelas forças republicanas no contexto que conduziu à Guerra Civil de Espanha (1936-39). Numa altura em que os espanhóis ainda acertam contas internas sobre aquele período da história, quer o quadro legal do Governo de Zapatero quer as beatificações do Vaticano só vêm reavivar as brasas.
Bento XVI bem apelou "à reconciliação e à coexistência pacífica", depois do cardeal Saraiva Martins ter ontem proclamado, na Praça de São Pedro, a beatificação dos 498 mártires. Mas as feridas ainda em aberto voltam a sangrar memória em Espanha e pingam na brancura do perdão papal. A poucos dias da entrada em vigor da Lei da Memória, destinada à reabilitação de vítimas da ditadura de Franco, esta iniciativa do Vaticano vem fazer renascer a discussão sobre o cariz político dos critérios utilizados. E sobre a bondade das escolhas que ficaram por fazer. Como as dos nomes de inúmeros sacerdotes católicos que terão morrido ás mãos dos franquistas na defesa dos ditreitos do povo basco, por exemplo. E no agitar das águas, vem à tona de tudo um pouco.


Há imagens terríveis. Fotos, filmes, quadros, desenhos, imagens. Dispensam as palavras para contar as suas histórias. É o caso desta foto, retrato acabado do amor ao próximo num abraço apertado entre a Igreja Católica e o Franquismo. Um retrato que não tem legenda. Mas que se tivesse uma, bem podia ser "se não queres vencê-los, junta-te a eles", uma máxima que a Igreja conhece bem. E muitos crentes a conheceram também, no decurso das guerras do século passado. Muitos deles tarde demais, só quando esbarravam nas portas fechadas da casa sempre aberta da fé cristã. E aí tombavam para sempre.

É certo que Cristo morreu descalço e quase nú. Mas os seus representantes na Terra, para além do brilho do ouro, é sabido serem igualmente apreciadores de uma bota bem engraxada e de uma batina sem rugas, para vestir quando são chamados a enfeitar as fotos do poder político. De qualquer poder político, diga-se. No abraço de sempre que sempre condiz com a ordem pública. Uma questão de imagem, seguramente. Que como toda a gente sabe, vale mil palavras.


RVN

8 comentários:

Anónimo disse...

"se não podes vencê-los, junta-te a eles", uma máxima que a Igreja conhece bem.

Quem se junta a quem e quem quer vencer quem ?? Uma organização com mais de dois mil anos de poder não precisa de se chegar, deixa é que se cheguem quando lhe convém....

Rui Vasco Neto disse...

atentateresa:

tem toda a razão. tanta razão que fui a correr emendar a prosa e substituir 'podes' por 'queres', numa adaptação exclusiva e original do provérbio de todos. ora confira!
faço-o como os gatos, com este comentário: deixando o rabo de fora.
mas veja só. pensar que lhe devo tudo isto a si...

grato pela perspicácia

rvn

Anónimo disse...

Meu Caro Rui
Podes dizer sem receio de errar. Cristo morreu totalmente nu. Era assim que se crucificavam os condenados. Se eram mulheres, eram crucificadas com o rosto voltado para a cruz, por respeito ao pudor!
Quanto à Guerra Civil de Espanha, meu caro, aquilo é muito mais complexo do que se pode imaginar. O PÚBLICO de ontem trouxe dois excelentes artigos de homens bem diferentes. VPV e frei Bento Domingues. Já li muito sobre a Guerra Civil, e vivi três anos em Valência, onde ela estava ainda bem viva na memória de todos. Poderia contar-te casos de vida espantosos. Conheci-os. Os republicanos mataram cerca de onze mil padres, frades e freiras. Alguns porque eram de facto inimigos politicos. Outros porque eram apenas católicos, porque também mataram civis por o serem. Por isso a Igreja só beatificou aqueles de que há a certeza que nada tinham que ver com motivações políticas.
Recebi aulas gratuitas de Arte de um santo homem, o padre D. Alfonso Roig, que nunca nos falou da guerra. E teve de fugir para França, depois de lhe queimarem a igreja. Ele e centenas de outros. Muitos morreram nos Pirenéus.
Franco matou cerca de trezentos padres. Depois de a guerra acabar, assinou quase duzentas mil sentenças de morte. Entre elas, a de Miguel Hernández, que a Guarda N. Republicana devolveu na fronteira para as suas prisões, e que lá morreu, de tuberculose, pois lhe fora "comutada" a pena em trinta anos de cadeia.
Não, meu caro, não te metas por aí. A Guerra Civil não tem heróis entre as figuras mais gradas. Só verdugos e vilões. Santos, talvez esses que a Igreja beatificou. Talvez D. Eugenio Laguarda, que morreu há pouco tempo, com mais de noventa anos. Foi fuzilado e atirado para uma vala, mas escapou. Nunca teve uma palavra contra os que quiseram matá-lo. Talvez o cobrador da carreira de autocarro Valência-Játiva, que era católico e lutou pela República. Foi um dos que me contaram muitas coisas. Depois de cumprida a tropa na guerra, teve de cumprir mais três anos sob Franco, que considerava que ele não tinha prestado o serviço militar à pátria, por não o ter feito com os "Brancos".
Disse demasiado.
Um abraço para ti e para a Sol. Já tentei entrar no seu blogue mas não consegui deixar mensagem. Tentarei de novo.

Teresa disse...

Daniel de Sá,

não esperava menos de si, apesar de só virtualmentte o conhecer.
Da Guerra Civil de Espanha conheço o que li nos livros e, felizmente, esse é também o meu conhecimento de muitas outras guerras. Mas de todas elas fico com uma única certeza - os homens são bestas e não há iPod que mude isso.
Não conheci nunhum condutor de autocarro que tivesse lutado na guerra civil de Espanha. Conheci, e mal, um velho soldado de Hitler. E percebi como os homens ficam diferentes quando lhes tiram o uniforme. E percebi o que seria incompreensivel se não tivesse um homem na minha frente, mas só um relato incolor num livro de História ou num post da net...
De tudo o que escreveu, não percebo a necessidade da Igreja de dar nomes a santos. Pode ser por princípio, mas desconfio sempre quando se muda de lado e a Igreja anda os saltinhos há demasiados séculos para o meu gosto. Apesar de tudo, acho muito mais justas as honras ao soldado desconhecido - ninguém sabe quem é, mas toda a gente sabe o que representa. Dar nomes a santos? E os outros, meu deus, e os outros??

Rui Vasco Neto disse...

daniel,

Disseste pouco, se calhar, do muito mais que saberás sobre o assunto, não o duvido.
Não percas de vista no entanto que em nenhuma guerra há heróis entre as figuras gradas, não foi só nesta.É sempre só verdugos e vilões, meu caro, em todas as guerras, em todos os lados, quero crer.
Registei e apreendi tudo o que disseste. Estranhei, confesso, a tua aparente segurança ao garantir que «a Igreja só beatificou aqueles de que há a certeza que nada tinham que ver com motivações políticas». É que são duas certezas na mesma frase, Daniel, e ambas complicadas de digerir assim, a seco, só com base na honrada palavra de um honrado amigo. Que me parece ter posto abundante coração neste olhar...

Anónimo disse...

Teresa e Rui
Se a Igreja não estudasse bem cada caso, teria beatificado todos os mortos católicos da Guerra Civil. É que o martírio pela fé é a única condição que pode levar um cristão à honra dos altares (apenas como "beato", ou seja, que só deve receber culto da igreja local) sem a necessidade da prova de um milagre. Mas, para que seja considerado martírio pela fé, é necessário haver a certeza de que o cristão foi morto apenas por razões de fé e de que o próprio estava ciente do risco que corria em manter a defesa da mesma. Por isso nenhum dos que abandonaram a sua igreja ou fugiram do seu convento terá sido beatificado. Tenho a certeza de que podeis estudar caso a caso que nenhum desses encontrareis.
Desculpem a pressa. Poderei voltar ao assunto. E conheço casos de um um humanismo exemplar de parte a parte.
Um abraço a cada um de vocês.
Daniel

Anónimo disse...

Boa tarde Rui,

Era este post que queria que eu visse? É que já não há muito a acrescentar (ao que já escrevi no 5 Dias ou ao que o Daniel de Sá já aqui escreveu e muito bem): mártires são aqueles que morrem por serem católicos e não católicos que morrem de forma violenta. Porque não há-de a Igreja beatificar os seus mártires? O timing é infeliz? Não sei, eu penso que tira algum elan à lei de Zapatero, que claramente quer priveligiar o campo republicano. E como tantos já disseram, naquela guerra - como em todas - houve bestas dos dois lados.

Mas não concordo com a apetência pelo ouro dos actuais padres. Conheço bastantes, a grande maioria jesuítas, e posso confirmar serem pessoas que trabalham incansavelmente, com uma vida simples e objectivos diferentes das tais bota engraxada e batina (que não usam) sem rugas. João Paulo II morreu sem ter qualquer bem e vivia com grande simplicidade. Parece-me haver aqui algum desconhecimento do caso...

Volto amanhã para mais polémicas.

Rui Vasco Neto disse...

volte quando quiser, maria.
a casa é sua e recebe-a com prazer.

rvn