Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


terça-feira, 23 de outubro de 2007

Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado.

Amália morreu e o país inteiro pôs luto. O povo chorou. E chorou sentido, quero crer, que Amália era mais que Amália para toda a gente. Presidentes e ministros, doutores e engenheiros das dores e das obras, vieram a terreiro dissecar, classificar, explicar e perorar sobre o mais profundo significado de cada entoação da diva, cada gesto, cada ai. E Amália tinha muitos ais. Os ais de toda uma geração de portugueses moravam na voz da senhora do fado, porque era o fado uma casa d'ais por excelência. Era o Portugal do conforto pobrezinho, no lar onde só há fartura de carinho, da minha alegre casinha tão modesta como eu.
Muitos anos de D.Perignon não apagaram em Amália a memória do seu próprio conforto pobrezinho num passado distante. E quis vida depois da morte para essa memória. Por isso determinou e deixou escrito: o que deixava de seu era para servir aos pobres. Mais o dom da sua voz.

Com o corpo de Amália no Panteão Nacional, a sua alma foi colocada na Fundação Amália Rodrigues, criada em 1999 com o intuito de ajudar pessoas desfavorecidas e apadrinhar instituições de beneficência e de solidariedade social. Com sede na casa onde a fadista vivia, a S.Bento, gere os bens de Amália Rodrigues, terrenos, apartamentos, a conta bancária, jóias e pratas. E tem uma dívida acumulada ao fisco de dois milhões e trezentos mil euros, nada mais, nada menos.

Na passada sexta-feira, uma portaria publicada no "Diário da República" declarava a fundação com o nome da fadista Amália Rodrigues "pessoa colectiva de utilidade pública". Com a condição de comprovar a regular constituição dos órgãos sociais e a inexistência de dívidas fiscais à Segurança Social. Na sua edição de ontem, o jornal "Correio da Manhã" chamava a atenção para o artigo 11.º A do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que obriga os responsáveis da Fundação a pagar a dívida para o estatuto de "utilidade pública" ser considerado válido. E Amadeu da Costa Aguiar, o presidente da Fundação, logo veio garantir que "a dívida ao Fisco de 2,3 milhões de euros da Fundação Amália Rodrigues deixará de existir com a concessão do estatuto de utilidade pública". Isto resume o assunto, no que toca ao Fisco e ao Estado e à legalidade. Sobra um pormenorzito de somenos.

Desde o dia em que foi criada até ao dia de hoje, a Fundação Amália Rodrigues não concretizou um único dos objectivos que presidiram à sua instituição, para amostra. Não consigo vislumbrar uma única razão, para amostra, que possa levar o Estado português a considerá-la Instituição de Utilidade Pública agora, a não ser uma razão de utilidade privada como uma dívida de 2,3 milhões de euros ao Fisco, por exemplo.

Estranho fado, o da memória de Amália. Triste fado e de autoria duvidosa. Certo mesmo só o tal pormenor, provavelmente sem qualquer significado. É que desde o dia em que se sentou na cadeira da presidência da Fundação Amália Rodrigues, em 1999, a única decisão oficial conhecida de Amadeu da Costa Aguiar foi a de nomear um presidente vitalício para gerir os destinos e os dinheiros da instituição, mais o pinga pinga da saudade da diva. Chama-se Amadeu da Costa Aguiar. Triste, convenhamos. Mas fado. Definitivamente, tudo isto é fado.

RVN

1 comentário:

Anónimo disse...

Certamente. E não é só o Amadeu .. . ele tem um filho que tambem anda na gosma !!!