Há gente assim, com vidas que nunca mais acabam. Seres com a estranha capacidade de se reinventarem mesmo no disparate.
De renascerem sempre, após cada uma das muitas mortes que vão tendo em vida. Tolos, há outros que lhes invejam este castigo como se fora uma gracinha para entreter os amigos nas noites frias de inverno ou nas amenas cavaqueiras de verão. São os tolos quatro-estações, que por desconhecerem a primavera das ideias estão condenados ao outono da mediocridade para sempre.


sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Por uma lágrima tua

Maddie McCann desapareceu há seis meses. Nunca escrevi uma linha sobre o assunto. Nem uma. Entendi que o mundo passaria muito bem sem mais uma opinião sobre este caso que tem já tanta opinião generalizada. Para além disso, para ser franco, não tenho uma que me satisfaça. É verdade. Não sei o que pensar do que vejo e ouço. De tanto especialista, tanto perito, nacional e estrangeiro, oficial e oficioso, português ou inglês, de tanta e tão horrorosa conjectura que me faz desejar que não venha a ser verdade a verdade que for.

No meio de um assunto tão sério dou por mim a ver e ouvir as bancadas de Heisel Park zangadas com Portugal. E a ver e ouvir a Polícia Judiciária portuguesa a dizer uma coisa e o contrário dessa coisa, dia sim dia não, durante meses e mais meses, quando o maior acerto do ignorante é saber estar calado. Leio os jornais, ouço a rádio, vejo a televisão. E sinto pena de ter o jornalismo cravado na alma, tantas vezes, que dava-me jeito ter nascido outra coisa qualquer nessas alturas.


Maddie McCann deixou de ter cheiro e textura, neste universo virtual. É natural que assim seja. Ninguém consegue não ganhar distância do factor humano de alguém que desapareceu e todos os dias é papel amarrotado no chão do Metro, ou imagem anterior à Floribela e interior do Você na TV. Como numa doença prolongada, a mente dos homens interiorizou o pior, pelo sim pelo não. E com a catástrofe em modo de processamento automático, a atenção de todos vira-se naturalmente para todos os outros aspectos da questão. Os mais suculentos primeiro, claro. E os pais, são culpados ou inocentes? E a polícia, agiu bem ou mal? E os ingleses, já viram o que dizem? E eles vão jantar e bebem oito garrafas de vinho? E a miúda não gritou, estaria drogada? Dizem que uma vizinha contou a uma amiga que tem um tio que é empregado de uma pastelaria onde vai um agente da judiciária que trabalha com uma senhora que chamada Luisa, ou Maria. E o que é que eu estava a dizer?

Toda a gente sabe, toda a gente ouviu dizer, toda a gente viu até aquilo que não havia para ver. Maddie é mais um nome, tão perto e tão distante de nós como Michael Jackson. E tão presente como Princesa Diana, na doçura da memória. As suas realidades enquanto pessoas estarão sempre muito aquém dos seus mitos enquanto nomes. É outro escalão, outro universo onde o sol é o ego de cada um.


Por entre a raiva e confusão que todo o espírito sente quando subitamente agredido pelo destino, Portugal e o mundo procuram desesperadamente um culpado porque desesperadamente não conseguem encontrar uma razão. Uma explicação para o que raio aconteceu. Ontem à noite, milhares e milhares de pessoas pararam as suas próprias vidas para assistirem a mais uma entrevista do casal McCann, numa busca ansiosa de uma lágrima em Kate, finalmente. Como quem até quer acreditar mas não consegue. Não sem lágrimas. Para servir com a entrevista, a SIC apresentou a opinião da pedopsiquiatra Ana Vasconcelos, convidada especificamente para analisar as lágrimas de Kate ou a ausência delas. Eu pensei em Maddie e no triste fado português. Por uma lágrima tua, isso sim que alegria. Me deixaria matar.

6 comentários:

Anónimo disse...

Lindo,lindo,lindo,... lindo final!

Anónimo disse...

Rui, tu viajas do humor ao drama (acabo de ler-te no diálogo com o FV) de uma maneira magnífica. Mas nós somos assim mesmo. Hoje terá acontecido a dezenas, centenas, talvez milhares de crianças o mesmo que à menina inglesa. São números somente. Mas dêem-nos um nome, dêem-nos um rosto (branco, negro, mestiço, não importa), e logo virá, teimosa, essa lágrima. Pelo menos um nó na garganta.

Anónimo disse...

Não consigo deixar um comentário. Por que será? (Tento só esta frase, para não gastar palavras.)

Anónimo disse...

Ah, agora é que li! O proprietário tem de aprovar! Tens toda a razão, meu Caro Rui. (Portanto, a anterior e esta não precisam de figurar. Para eu não fazer figura de urso.)
Um abraço.
Daniel

Rui Vasco Neto disse...

Daniel:

Melhor que ler-te só mesmo conversar contigo. Espero poder ter esse prazer muito em breve (nada confirmado ainda).

Ler a sequência dos teus 3 comentários (aprovados semi-automaticamente por este processo que também a ti deixou ás aranhas..) mostra-nos duas coisitas, a saber:
- o processo mental que seguiste, um mimo d'aflição adoçada pela vontade férrea de cumprimentar um amigo;
- que os homens brilhantes também fazem figuras de urso.

Ora imagina se logo eu, catedátrico em figuras de urso e outras, ia resistir a publicar a tua, que por algum tempo me vai servir a ilusão que afinal sou mais 'normal' do que pensava...

vem mais vezes.

abraço-te

rvn

Rui Vasco Neto disse...

catedátrico? vem de cáteda? tri-cáteda?
ooops